DOS DELITOS
E
DAS PENAS
Cesare Beccaria
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APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia
“Dos delitos e das penas” é uma obra que se insere
no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII,
ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire,
Rousseau, Montesquieu e tantos outros.
Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma
espécie de vingança coletiva; essa concepção havia induzido à aplicação
de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis que os
males produzidos pelos delitos. Prodigalizara-se a prática de torturas,
penas de morte, prisões desumanas, banimentos, acusações secretas.
Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria. Sua obra
foi elogiada por intelectuais, religiosos e nobres (inclusive Catarina
da Rússia). As críticas foram poucas, geralmente resultantes de
interesses egoísticos de magistrados e clérigos. A humanidade encontrava
novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça.
Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido
de novo, especialmente no Brasil. A prática de torturas, entre nós, tem
sido cada vez mais freqüente. A pena de morte, que vai sendo abolida em
países mais avançados, aqui tem sido proposta por inúmeros políticos
raivosos. Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis, às vezes
bárbaras. Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões. Assassinos
frios, por serem influentes, desfrutam de todas as mordomias.
Que o espírito de Beccaria nos ilumine.
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BIOGRAFIA DO AUTOR
C ESARE BONESANA , marquês de Beccaria, nasceu em Milão no ano de 1738.
Educado em Paris pelos jesuítas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da
literatura e das matemáticas. Muita influência exerceu na formação do
seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de L'Esprit
de Helvétius. Desde então, todas as suas preocupações se voltaram para o
estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade literária
que se formou em Milão e que, inspirando-se no exemplo da de Helvétius,
divulgou os novos princípios da filosofia francesa. Além disso, a fim de
divulgar na Itália as idéias novas, Beccaria fez parte da redação do
jornal II Caffè, que apareceu de 1764 a 1765.
Foi mais ou menos por essa época que, insurgindo-se contra as
injustiças dos processos criminais em voga, Beccaria principiou a agitar
com os seus amigos, entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e
Alessandro Verri, os complexos problemas relacionados com a matéria.
Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de
perseguições, o autor mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno,
e ainda assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e
indecisas.
O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa
aplicada à legislação penal: contra a tradição jurídica, invoca a razão
e o sentimento; faz-se porta-voz dos protestos da consciência pública
contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a
tortura, a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade ante o
castigo, a atrocidade dos suplícios; estabelece limites entre a justiça
divina e a justiça humana, entre os pecados e os delitos; condena o
direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade
social; declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das
penas aos delitos, assim como a separação do poder judiciário e do poder
legislativo. Nenhum livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi
verdadeiramente extraordinário, sobretudo entre os filósofos franceses.
O abade Morellet traduziu-o, Diderot anotou-o, Voltaire comentou-o.
d'Alembert, Buffon, Hume, Helvétius, o barão d'Holbach, em suma, todos
os grandes homens da França manifestaram desde logo a sua admiração e
seu entusiasmo. Em 1766, indo a Paris, Beccaria foi alvo das mais vivas
demonstrações de simpatia. No entanto, tendo regressado a Milão, cidade
que ele não mais abandonou, teve de sofrer uma campanha infamante por
parte dos seus adversários, que ainda se apegavam aos preconceitos e à
rotina para acusá-lo de heresia. A denúncia não teve conseqüências, mas
Beccaria ressentiu-se de tal forma que o receio de novas perseguições
levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.
Em 1768, o governo austríaco, sabedor de que ele recusara as
ofertas de Catarina II, que procurara atraí-lo para São Petersburgo,
criou em seu favor uma cátedra de economia política.
Beccaria morreu em Milão, em 1 794.
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PREFÁCIO DO AUTOR
A LGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador,
compilados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em
Constantinopla, combinados em seguida com os costumes dos lombardos e
amortalhados num volumoso calhamaço de comentários obscuros, constituem
o velho acervo de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o
nome de leis; e, mesmo hoje, o preconceito da rotina, tão funesto quanto
generalizado, faz que uma opinião de Carpozow (1) , uma velha prática
indicada por Claro (2) , um suplício imaginado com bárbara complacência
por Francisco (3) , sejam as regras que friamente seguem esses homens,
que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus
concidadãos
É esse código informe, que não passa de produção monstruosa
dos séculos mais bárbaros, que eu quero examinar nesta obra.
Limitar-me-ei, porém, ao sistema criminal, cujos abusos ousarei
assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública,
sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência
dos leitores vulgares.
Se pude investigar livremente a verdade, se me elevei acima
das opiniões comuns, devo tal independência à indulgência e às luzes do
governo sob o qual tenho a felicidade de viver. Os grandes reis e
príncipes que querem a felicidade dos homens que governam são amigos da
verdade, quando esta lhes é revelada por um filósofo que, do fundo do
seu retiro, mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em
combater com as armas da razão as empresas da violência e da intriga.
De resto, examinando-se os abusos de que vamos falar,
verificar-se-á que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos
séculos passados, mas não do nosso século e dos seus legisladores.
Se alguém quiser dar-me a honra de criticar meu livro, trate
antes de apreender bem o fim que me propus. Longe de pensar em diminuir
a autoridade legítima, ver-se-á que todos os meus esforços só visam a
engrandecê-la e esta se engrandecerá, de fato, quando a opinião pública
for mais poderosa do que a força, quando a indulgência e a humanidade
fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder.
Críticos houve, cujas intenções não podiam ser honestas, que
atacaram esta obra alterando-a (4) . Devo interromper-me um instante,
para impor silêncio à mentira azoinada, aos furores do fanatismo, às
calúnias covardes do ódio.
Os princípios de moral e de política, aceitos entre os homens,
derivam em geral de três fontes: a revelação, a lei natural e as
convenções sociais. Não se pode estabelecer comparação entre a primeira
e as duas últimas, do ponto-de-vista dos seus fins principais;
completam-se, porém, ao tenderem igualmente para tornar os homens
felizes na terra. Discutir as relações das convenções sociais não
significa atacar as relações que podem encontrar-se entre a revelação e
a lei natural.
Uma vez que esses princípios divinos, embora imutáveis, foram
de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos, ou pela maldade
humana, ou pelas falsas religiões, ou pelas idéias arbitrárias da
virtude e do vício, deve parecer necessário examinar (pondo de lado
quaisquer considerações estranhas) os resultados das simples convenções
humanas, quer essas convenções tenham sido feitas realmente, quer se
suponham vantajosas para todos. Todas as opiniões, todos os sistemas de
moral devem reunir-se necessariamente nesse ponto, e nunca se louvariam
bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados
e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em
sociedade.
Podem, pois, distinguir-se três espécies de virtudes e de
vícios, cuja fonte está igualmente na religião, na lei natural e nas
convenções políticas. Jamais devem essas três espécies estar em
contradição entre si; não alcançam, contudo, os mesmos resultados e não
obrigam aos mesmos deveres. A lei natural exige menos que a revelação, e
as convenções sociais menos que a lei natural. Assim, é muito importante
distinguir bem os efeitos dessas convenções, isto é, dos pactos
expressos ou tácitos que os homens se impuseram, porque nisso deve
residir o exercício legítimo da força, nessas relações de homem a homem,
que não exigem a missão especial do Ser supremo.
Pode dizer-se, portanto, com razão, que as idéias da virtude
política são variáveis. As da virtude natural seriam sempre claras e
precisas se as fraquezas e as paixões humanas não empanassem a sua
pureza. As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes,
porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus, que as conserva
inalteráveis.
Pode, pois, aquele que fala das convenções sociais e dos seus
resultados ser acusado de mostrar princípios contrários, à lei natural
ou à revelação, por nada dizer a respeito?... Se diz que o estado de
guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade, é o caso de
compará-lo a Hobbes (5) , que não supõe para o homem isolado nenhum
dever, nenhuma obrigação natural?... Não se pode ao – contrário,
considerar o que ele diz como um fato, que foi tão somente a
conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis? Enfim, não é um
erro censurar um escritor, que examina os efeitos das convenções
sociais, por não admitir antes de tudo a existência mesma dessas
convenções?
A justiça divina e a justiça natural são, por sua essência,
constantes e invariáveis, porque as relações existentes entre dois
objetos da mesma natureza não podem mudar nunca. Mas, a justiça humana,
ou, se se quiser, a justiça política, não sendo mais do que uma relação
estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade, também
pode variar, à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao
estado social. Só se pode determinar bem a natureza dessa justiça
examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes
combinações que governam os homens.
Se todos esses princípios, essencialmente distintos, chegam a
confundir-se, já não é possível raciocinar com clareza sobre os assuntos
políticos.
Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do
injusto, segundo a maldade ou a bondade interiores da ação. Ao
publicista cabe determinar tais limites em política, isto é, sob as
relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade.
Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao
outro, porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo das
virtudes inalteráveis que emanam da Divindade.
Repito, pois, que, se quiserem dar ao meu livro a honra de uma
crítica, não comecem por me atribuir princípios contrários à virtude ou
à religião, pois tais princípios não são os meus; em lugar de me
assinalar como um ímpio ou um sedicioso, contentem-se em mostrar que sou
mau lógico ou ignorante político; não tremam a cada proposição em que
defendo os interesses da humanidade; verifiquem a inutilidade de minhas
máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões; façam-me ver as
vantagens das práticas recebidas.
Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da
minha submissão ao soberano, ao responder às Notas e Observações que se
publicaram contra minha obra. Devo guardar silêncio em relação aos
escritores que doravante só me opuserem as mesmas objeções. Mas, aquele
que puser em sua crítica a decência e o respeito que os homens honestos
se devem entre si, e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a
demonstrar-lhe os princípios mais simples, de qualquer natureza que
sejam, encontrará em mim um homem menos apressado a defender suas
opiniões particulares do que um tranqüilo amigo da verdade, pronto a
confessar os seus erros.
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I. INTRODUÇÃO
AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos
os seus membros.
No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendência
contínua de acumular no menor número os privilégios, o poder e a
felicidade, para só deixar à maioria miséria e fraqueza.
Só com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de
ordinário, os homens abandonam a leis provisórias e à prudência do
momento o cuidado de regular os negócios mais importantes, quando não os
confiam à discrição daqueles mesmos cujo interesse é oporem-se às
melhores instituições e às leis mais sábias.
Além disso, não é senão depois de terem vagado por muito tempo
no meio dos erros mais funestos, depois de terem exposto mil vezes a
própria liberdade e a própria existência, que, cansados de sofrer,
reduzidos aos últimos extremos, os homens se determinam a remediar os
males que os afligem.
Então, finalmente, abrem os olhos a essas verdades palpáveis
que, por sua simplicidade mesma, escapam aos espíritos vulgares,
incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e
sobre palavra todas as impressões que se lhes queiram dar.
Abramos a história, veremos que as leis, que deveriam ser
convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais das
vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou o produto do acaso
e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza
humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este
único fim: todo o bem-estar possível para a maioria.
Felizes as nações (se há algumas) que não esperaram que
revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma
orientação para o bem, e que, mediante leis sábias. apressaram a
passagem de um para o outro. Como é digno de todo o reconhecimento do
gênero humano o filósofo (6) que, do fundo do seu retiro obscuro e
desprezado, teve a coragem de lançar na sociedade as primeiras sementes
por tanto tempo infrutíferas das verdades úteis!
As verdades filosóficas, por toda parte divulgadas através da
imprensa, revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os soberanos
aos súditos e os povos entre si. O comércio animou-se e entre as nações
elevou-se uma guerra industrial, a única digna dos homens sábios e dos
povos policiados.
Mas, se as luzes do nosso século já produziram alguns
resultados, longe estão de ter dissipado todos os preconceitos que
tínhamos. Ninguém se levantou, senão frouxamente, contra a barbárie das
penas em uso nos nossos tribunais. Ninguém se ocupou com reformar a
irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislação tão
importante quanto descurada em toda a Europa. Raramente se procurou
destruir, em seus fundamentos, as séries de erros acumulados desde
vários séculos; e muito poucas pessoas tentaram reprimir, pela força das
verdades imutáveis, os abusos de um poder sem limites, e fazer cessar os
exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos
encaram como um dos seus direitos.
Entretanto, os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à
ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a
barbárie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quiméricos; o
aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda
aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a
incerteza; tantos métodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam
ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que
dirigem as opiniões humanas.
O imortal Montesquieu (7) só ocasionalmente pode abordar
essas importantes matérias. Se eu segui as pegadas luminosas desse
grande homem, é que a verdade é uma e a mesma em toda parte. Mas, os que
sabem pensar (e é somente para estes que escrevo) saberão distinguir
meus passos dos seus. Sentir-me-ei feliz se, como ele, puder ser objeto
do vosso secreto reconhecimento, oh vós, discípulos obscuros e pacíficos
da razão! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito
pelo qual as almas sensíveis respondem à. voz dos defensores da
humanidade!
Seria este, talvez, o momento de examinar e distinguir as
diferentes espécies de delitos e a maneira de puni-los; mas, o número e
a variedade dos crimes, segundo as diversas circunstâncias de tempo e de
lugar, nos lançariam num atalho imenso e fatigante. Contentar-me-ei,
pois, com indicar os princípios mais gerais, as faltas mais comuns e os
erros mais funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um
amor mal entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos
que desejariam submeter os homens à regularidade. dos claustros.
Mas, qual é a origem das penas, e qual o fundamento do direito
de punir? Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes? Será
a pena de morte verdadeiramente útil, necessária, indispensável para a
segurança e a boa ordem da sociedade? Serão justos os tormentos e as
torturas? Conduzirão ao fim que as leis se propõem? Quais os melhores
meios de prevenir os delitos? Serão as mesmas penas igualmente úteis em
todos os tempos? Que influência exercem sobre os costumes?
Todos esses problemas merecem que se procure resolvê-los com
essa precisão geométrica que triunfa da destreza dos sofismas, das
dúvidas tímidas e das seduções da eloqüência.
Sentir-me-ia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter
sido o primeiro que apresentou na Itália, com maior clareza, o que
outras nações ousaram escrever e começam a praticar.
Mas, se, ao sustentar os direitos do gênero humano e da
verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas das
trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente funesta, as
bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos sentimentos
da alegria e da felicidade consolar-me-iam do desprezo do resto dos
homens.
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II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR
A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem
durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do
homem.
Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará
sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder. Assim, a menor
força, continuamente aplicada, destrói por fim um corpo que pareça
sólido, porque lhe comunicou um movimento violento.
Consultemos, pois, o coração humano; acharemos nele os
princípios fundamentais do direito de punir.
Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua
liberdade visando unicamente ao bem público. Tais quimeras só se
encontram nos romances. Cada homem só por seus interesses está ligado às
diferentes combinações políticas deste globo; e cada qual desejaria, se
fosse possível, não estar ligado pelas convenções que obrigam os outros
homens. Sendo a multiplicação do gênero humano, embora lenta e pouco
considerável, muito superior aos meios que apresentava a natureza
estéril e abandonada, para satisfazer necessidades que se tornavam cada
dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras, os primeiros homens,
até então selvagens, se viram forçados a reunir-se. Formadas algumas
sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou
de resistir às primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham
feito os indivíduos, num contínuo estado de guerra entre si. As leis
foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e
isolados sobre a superfície da terra.
Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar
inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de
conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do
resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade,
sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação; e aquele
que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados
da administração foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso
protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois tal é a
tendência do homem para o despotismo, que ele procura sem cessar, não só
retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos
outros.
Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para
comprimir esse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a
sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas
contra os infratores das leis.
Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis, porque a
experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar princípios
estáveis de conduta. Nota-se, em todas as partes do mundo físico e
moral, um princípio universal de dissolução, cuja ação só pode ser
obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam
imediatamente os sentidos e que se fixam nos espíritos, para
contrabalançar por impressões vivas a força das paixões particulares,
quase sempre opostas ao bem geral. Qualquer outro meio seria
insuficiente. Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos
presentes, os mais sábios discursos, a eloqüência mais arrebatadora, as
verdades mais sublimes, não passam, para elas, de um freio impotente que
logo despedaçam.
Por conseguinte, só a necessidade constrange os homens a ceder
uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr
no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o
que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o
fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar
dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito
(8) ; é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito
da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas
serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a
liberdade que o soberano conservar aos súditos.
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III. CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS
A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que só as leis podem fixar
as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode
residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade
unida por um contrato social.
Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode
com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não
seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do
que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está
determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto
do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um
cidadão.
A segunda conseqüência é que o soberano, que representa a
própria sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem
submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se alguém violou essas leis.
Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o soberano,
que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa
violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a
contestação. Esse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem
apelo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há.
Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse
reprovada pela filosofia, mãe das virtudes benéficas e, por essa razão,
esclarecida, que prefere governar homens felizes e livres a dominar
covardemente um rebanho de tímidos escravos; mesmo que os castigos
cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes
atribui, o de impedir os crimes, bastará provar que essa crueldade é
inútil, para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, contrária
a toda justiça e à própria natureza do contrato social.
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IV. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
R ESULTA ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que os
juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais,
pela razão mesma de que não são legisladores. Os juizes não receberam as
leis como uma tradição doméstica, ou como um testamento dos nossos
antepassados, que aos seus descendentes deixaria apenas a missão de
obedecer. Recebem-nas da sociedade viva, ou do soberano, que é
representante dessa sociedade, como depositário legítimo do resultado
atual da vontade de todos.
Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na
obrigação de executar antigas convenções (9) ; essas velhas convenções
são nulas, pois não puderam ligar vontades que não existiam. Não se pode
sem injustiça exigir sua execução; seria reduzir os homens a não passar
de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua
força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem
geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos
voluntariamente fizeram ao rei.
Qual será, pois o legítimo intérprete das leis? O soberano,
isto é, o depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo
dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não
um ato contrário às leis.
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a
lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a
liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a
mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.
Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso
consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques
e abandonar as leis à torrente das opiniões. Essa verdade me parece
demonstrada, embora pareça um. paradoxo aos espíritos vulgares que se
impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com
conseqüências distantes, mas mil vezes mais funestas, de um só princípio
falso estabelecido numa nação.
Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idéias se
mantêm. Quanto mais complicadas, tanto maiores são as suas relações e
resultados.
Cada homem tem sua maneira própria de ver; e o mesmo homem, em
diferentes épocas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma
lei seria, pois, o resultado da boa ou má lógica de um juiz, de uma
digestão fácil ou penosa, da fraqueza do acusado, da violência das
paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, de todas
as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no
espírito inconstante do homem.
Veríamos, assim, a sorte de um cidadão mudar de face ao passar
para outro tribunal, e a vida dos infelizes estaria à mercê de um falso
raciocínio, ou do mau humor do juiz. Veríamos o magistrado interpretar
apressadamente as leis, segundo as idéias vagas e confusas que se
apresentassem ao seu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidos
diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em
lugar de escutar a voz constante e invariável das leis, ele se
entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias.
Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo
com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a observação
literal das leis?
Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador
a fazer, no texto equívoco de uma lei, correções necessárias e fáceis.
Mas, seguindo a letra da lei, não se terá ao menos que temer esses
raciocínios perniciosos, nem essa licença envenenada de tudo explicar de
maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal.
Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao
magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se
tais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando, enfim, a
regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o
ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas
simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos
ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis
quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; tanto mais
cruéis quanto maior resistência encontram, porque a crueldade dos
tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se
lhes opõem; tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu
jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.
Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular
exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil,
porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança
de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da
reunião dos homens em sociedade.
É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo
espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o
nome sagrado de virtude à covardia, às fraquezas e às complacências
cegas; estarão, porém, menos submetidos às leis e à autoridade dos
magistrados.
Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas
subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o
peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia recear, se esses pequenos
tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendê-lo; mas, os
tiranos não lêem.
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V. DA OBSCURIDADE DAS LEIS
S E a interpretação arbitrária das leis é um mal, também o é a sua
obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse inconveniente é bem
maior ainda quando as leis não são escritas em língua vulgar (10) .
Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma
espécie de catecismo, enquanto forem escritas numa língua morta e
ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como
misteriosos oráculos, o cidadão, que não puder julgar por si mesmo as
conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade
e sobre os seus bens, ficará na dependência de um pequeno número de
homens depositários e intérpretes das leis.
Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto
mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haverá; pois não se
pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime, o conhecimento
e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das paixões.
Que pensar dos homens,, quando se reflete que as leis da maior
parte das nações estão escritas em línguas mortas e que esse costume
bárbaro ainda subsiste nos países mais esclarecidos da Europa?
Dessas últimas reflexões resulta que, sem um corpo de leis
escritas, jamais uma sociedade poderá tomar uma forma de governo fixo,
em que a força resida no corpo político e não nos membros desse corpo;
em que as leis não possam alterar-se e destruir-se pelo choque dos
interesses particulares, nem reformar-se senão pela vontade geral.
A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas
se tornam mais duvidosas e mais contestadas, à medida que a gente se
afasta de sua fonte. Ora, se não existe um momento estável do pacto
social, como resistirão as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e
das paixões?
Vê-se por aí, igualmente, a utilidade da imprensa, que pode,
só ela, tornar todo o público, e não alguns particulares, depositário do
código sagrado das leis.
Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala
e de intriga, que, não pode suportar a luz e que finge desprezar as
ciências somente porque secretamente as teme.
Se agora, na Europa, diminuem esses crimes atrozes que
assombravam nossos pais, se saímos enfim desse estado de barbárie que
tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos, é à imprensa que o
devemos.
Os que conhecem a história de dois ou três séculos e do nosso
podem ver a humanidade, a generosidade, a tolerância mútua e as mais
doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolência. Quais foram, ao
contrário, as virtudes dessas épocas que, tão sem propósitos, se chamam
séculos da boa fé e da simplicidade antiga?
A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição; a
avareza e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam
de sangue humano os palácios dos grandes e os tronos dos reis. Eram
traições secretas e morticínios públicos. O povo só encontrava na
nobreza opressores e tiranos; e os ministros do Evangelho, manchados na
carnificina e as mãos ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do
povo um Deus de misericórdia e de paz.
Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande
século em que vivemos não acharão ao menos que esse quadro abominável
possa convir-lhe.
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VI. DA PRISÃO
O UTORGA-SE , em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis,
um direito contrário ao fim da sociedade, que é a segurança pessoal;
refiro-me ao direito de prender discricionariamente os cidadãos, de
tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e, por conseguinte
de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indícios do
delito.
Como se tornou tão comum um erro tão funesto? Embora a prisão
difira das outras penas, por dever necessariamente preceder a declaração
jurídica do delito, nem por isto deixa de ter, como todos os outros
gêneros de castigos, o caráter essencial de que só a lei deve determinar
o caso em que é preciso empregá-la.
Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que
indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a
interrogatório.
O clamor público, a fuga, as confissões particulares, o
depoimento de um cúmplice do crime, as ameaças que o acusado pode fazer,
seu ódio inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e outras
presunções semelhantes, bastam para permitir a prisão de um cidadão.
Tais indícios devem, porém, ser especificados de maneira estável pela
lei, e não pelo juiz, cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade
pública, quando não são simplesmente a aplicação particular de uma
máxima geral emanada do código das leis.
À medida que as penas forem mais brandas, quando as prisões já
não forem a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a
humanidade penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores
impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão, as
leis poderão contentar-se com indícios mais fracos para ordenar a
prisão.
A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o
acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida. Entre os romanos,
quantos cidadãos não vemos, acusados anteriormente de crimes hediondos,
mas em seguida reconhecidos inocentes, receberem da veneração do povo os
primeiros cargos do Estado? Porque é tão diferente, em nossos dias, a
sorte de um inocente preso?
É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta
aos nossos espíritos a idéia da força e do poder, em lugar da justiça; é
porque se lançam, indistintamente, na mesma masmorra, o inocente
suspeito e o criminoso convicto; é porque a prisão, entre nós, é antes
um suplício que um meio de deter um acusado; é porque, finalmente, as
forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão
separadas das que mantêm as leis no interior, quando deveriam estar
estreitamente unidas.
Na opinião pública, as prisões militares desonram bem menos do
que as prisões civis. Se as tropas do Estado, reunidas sob a autoridade
das leis comuns, sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados,
fossem encarregadas da guarda das prisões, a mancha de infâmia
desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos
militares; porque, em geral, a infâmia, como tudo o que depende das
opiniões populares, se liga mais à forma do que ao fundo.
Mas, como as leis e os costumes de um povo estão sempre
atrasados de vários séculos em relação às luzes atuais, conservamos
ainda a barbárie e as idéias ferozes dos caçadores do norte, nossos
selvagens antepassados.
Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão bem
longe das luzes dos povos. Ainda estamos dominados pelos preconceitos
bárbaros que nos legaram os nossos avós, os bárbaros caçadores do norte.
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VII. DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS
E IS um teorema geral, que pode ser muito útil para calcular a certeza
de um fato e, principalmente, o valor dos indícios de um delito:
Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto é,
quando os indícios do delito não se sustentam senão uns pelos outros,
quando a força de várias provas depende da verdade de uma só, o número
dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato:
merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que parece
certa, derrubais todas as outras.
Mas, quando as provas são independentes, isto é quando cada
indício se prova à parte, quanto mais numerosos forem esses indícios,
tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em
nada influi sobre a certeza das restantes.
Não se admirem de ver-me empregar a palavra probabilidade ao
tratar de crimes que, para merecerem um castigo, devem ser certos;
porque, a rigor, toda certeza moral é apenas uma probabilidade, que
merece, contudo, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de
bom senso é forçado a dar-lhe o seu assentimento, por uma espécie de
hábito natural que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda
especulação.
A certeza que se exige para convencer um culpado é, pois, a
mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negócios.
As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas
e provas imperfeitas. As provas perfeitas são as que demonstram
positivamente que é impossível que o acusado seja inocente. As provas
são imperfeitas quando não excluem a possibilidade da inocência do
acusado.
Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a
condenação; se se quiser, porém, condenar sobre provas imperfeitas, como
cada uma dessas provas não estabelece a impossibilidade da inocência do
acusado, é preciso que sejam em número muito grande para valerem uma
prova perfeita, isto é, para provarem todas juntas que é impossível que
o acusado não seja culpado.
Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas, às quais o
acusado nada responde de satisfatório, embora deva, se é inocente, ter
meios de justificar-se, se tornam por isso mesmo provas perfeitas.
É, todavia, mais fácil sentir essa certeza moral de um delito
do que defini-la exatamente. Eis o que me faz encarar como sábia a lei
que, em algumas nações, dá ao juiz principal assessores que o magistrado
não escolheu, mas que a sorte designou livremente; porque então a
ignorância, que julga por sentimento, está menos sujeita ao erro do que
homem instruído que decide segundo a incerta opinião.
Quando as leis são claras e precisas, o dever do juiz
limita-se à constatação do fato. Se são necessárias destreza e
habilidade na investigação das provas de um delito, se se requerem
clareza e precisão na maneira de apresentar o seu resultado, para julgar
segundo esse mesmo resultado, basta o simples bom-senso: guia menos
enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a só procurar
culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os
seus estudos.
Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é
uma ciência.
Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve
que cada um seja julgado por seus iguais; porque, quando se trata da
fortuna e da liberdade de um cidadão, todos os sentimentos inspirados
pela desigualdade devem silenciar. Ora, o desprezo com o qual o homem
poderoso olha para a vitima do infortúnio, e a indignação que
experimenta o homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima
dele por sua condição, são sentimentos perigosos que não existem nos
julgamentos de que falo.
Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais, os
juizes devem ser escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade
entre os do ofendido, para contrabalançar assim os interesses pessoais,
que modificam, mau grado nosso, as aparências dos objetos, e para só
deixar falar a verdade e as leis.
Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número
dos juizes que lhe forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente
desse direito, exercê-lo-á com reserva; porque de outro modo pareceria
condenar-se a si mesmo.
Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do
crime: e a opinião, que é talvez o único laço das sociedades, porá freio
à violência e às paixões. O povo dirá: Não somos escravos, mas
protegidos pelas leis. Esse sentimento de segurança, que inspira a
coragem, eqüivale a um tributo para o soberano que compreende os seus
verdadeiros interesses.
Não entrarei em outros pormenores sobre as precauções que
exige o estabelecimento dessas espécies de instituições. Para aqueles
aos quais é necessário tudo dizer, tudo eu diria i nutilmente.
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VIII. DAS TESTEMUNHAS
É IMPORTANTE , em toda boa legislação, determinar de maneira exata o
grau de confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas
necessárias para constatar o delito.
Todo homem razoável, isto é, todo homem que puser ligação em
suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens,
poderá ser recebido em testemunho. Mas, a confiança que se lhe der deve
medir-se pelo interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade.
É, pois, por motivos frívolos e absurdos que as leis não
admitem em testemunho nem as mulheres, por causa de sua franqueza, nem
os condenados, porque estes morreram civilmente, nem as pessoas com nota
de infâmia, porque, em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a
verdade, quando não tem nenhum interesse em mentir.
Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre
os negócios deste mundo, um dos mais notáveis é o que faz considerar
como nulo o depoimento de um culpado já condenado. Graves jurisconsultos
fazem este raciocínio Este homem foi atingido por morte civil; ora, um
morto já não é capaz de nada... Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã
metáfora: e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o
direito de preferência sobre as formas judiciárias.
Sem dúvida, é preciso que os depoimentos de um culpado já
condenado não possam retardar o curso da justiça; mas porque, após a
sentença, não conceder aos interesses da verdade e à terrível situação
do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se possível, ou aos
seus cúmplices ou a si próprio, com depoimentos novos que mudam a
natureza do fato?
As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias
nos processos criminais, ou porque não deixam nada à arbitrariedade do
juiz, ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos
com solenidade e segundo as regras, e não precipitadamente ditados polo
interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos homens, escravos do
hábito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim uma
idéia mais augusta das funções do magistrado.
A verdade, muitas vezes demasiado simples ou demasiado
complicada, tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o
respeito do povo.
As formalidades, porém, devem ser fixadas, por leis, nos
limites em que não possam prejudicar a verdade. De outro modo, seria uma
nova fonte de inconvenientes funestos.
Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que
não tem nenhum interesse em mentir. Deve, pois, conceder-se à testemunha
mais ou menos confiança, à proporções do ódio ou da amizade que ela tem
ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos
mantenham.
Uma só testemunha não basta porque, negando o acusado o que a
testemunha afirma, não há nada de certo e a justiça deve então respeitar
o direito que cada um tem de ser julgado inocente (11) .
Deve dar-se às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto
quanto mais atrozes são os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias.
Tais são, por exemplo, as acusações de magia e as ações gratuitamente
cruéis. No primeiro caso, é melhor acreditar que as testemunhas mentem,
porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto, por ódio
ou por ignorância, do que ver um só homem exercer um poder que Deus
recusou a todo ser criado.
Da mesma forma, não se deve admitir com precipitação a
acusação de uma crueldade sem motivos, porque o homem só é cruel por
interesse, por ódio ou por temor. O coração humano é incapaz de um
sentimento inútil; todos os seus sentimentos são o resultado das
impressões que os objetos causaram sobre os sentidos.
Deve, igualmente, dar-se menos crédito a um homem que é membro
de uma ordem, ou de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos
costumes e máximas são em geral desconhecidos, ou diferem dos usos
comuns, porque, além de suas próprias paixões, esse homem tem ainda as
paixões da sociedade da qual faz parte.
Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos,
quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime;
porque o tom, os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes
idéias que os homens ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal
modo os discursos que é quase impossível repeti-los com exatidão.
As ações violentas, que constituem os verdadeiros delitos,
deixam traços notáveis na maioria das circunstâncias que as acompanham e
efeitos que das mesmas derivam; mas, as palavras não deixam vestígio e
só subsistem na memória, quase sempre infiel e muitas vezes
influenciadas, dos que as ouviram.
É, pois, infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre
discursos do que sobre ações, pois o número das circunstâncias que se
alegam para provar as ações fornece ao acusado mais recursos para
justificar-se; ao passo que um delito de palavras não apresenta, de
ordinário, nenhum meio de justificação.
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IX. DAS ACUSAÇÕES SECRETAS
A S acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado
necessário em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal
uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele que suspeita um delator no
seu concidadão vê nele logo um inimigo. Costumam, então, mascarar-se os
próprios sentimentos; e o hábito de ocultá-los a outrem faz que cedo
sejam dissimulados a si mesmo.
Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de
piedade! Desorientados, sem guia e sem princípios estáveis, vagam ao
acaso no vasto mar da incerteza, preocupados exclusivamente em escapar
aos monstros que os ameaçam. Um futuro cheio de mil perigos envenena
para eles os momentos presentes. Os prazeres duráveis da tranqüilidade e
da segurança lhes são desconhecidos. Se gozaram., apressadamente e na
confusão, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre
o triste curso de sua desgraçada vida, bastarão para consolá-los de ter
vivido?
Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos,
defensores da pátria e do trono? Acharemos entre eles magistrados
incorruptíveis, que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros
interesses do soberano, com uma eloqüência livre e patriótica, que
deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de
todos os cidadãos, que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do
pobre a segurança, a paz, a confiança, e que dêem ao trabalho e à
indústria a esperança de uma sorte cada vez mais doce?... É sobretudo
este último sentimento que reanima os Estados e lhes dá uma vida nova.
Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se arma com o
escudo mais sólido da tirania: o sigilo?...
Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo
em cada súdito e se vê forçado, para garantir a tranqüilidade pública, a
perturbar a de cada cidadão!
Quais são, pois, os motivos sobre os quais se apoiam os que
justificam as acusações e as penas secretas? A tranqüilidade pública? A
segurança e a manutenção da forma de governo? É mister confessar que
estranha constituição é aquela em que o governo, que tem por si a força
e a opinião, ainda mais poderosa do que a força, parece todavia temer
cada cidadão!
Receia-se que o acusador não esteja em segurança? As leis são,
então, insuficientes para defendê-lo, e os súditos são mais poderosos do
que o soberano e as leis.
Desejar-se-ia salvar o delator da infâmia a que se expõe?
Seria, então, confessar que se autorizam as calúnias secretas, mas que
se punem as calúnias públicas.
Apoiar-se-ão na natureza do delito? Se o governo for bastante
infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo
úteis ao público, terá razão: as acusações e os julgamentos, nesse caso,
jamais seriam bastante secretos.
Pode haver, porém, um delito, isto é, uma ofensa à sociedade,
que não seja do interesse de todos punir publicamente? Respeito todos os
governos; não falo de nenhum em particular e sei que há circunstâncias
em que os abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um
Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o corpo
político. Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado
do universo, minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações
secretas: julgaria ver toda a posteridade responsabilizar-me pelos males
atrozes que elas acarretam.
Já o disse Montesquieu: as acusações públicas são conformes ao
espírito do governo republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a
primeira paixão dos cidadãos. Nas monarquias, em que o amor da pátria é
muito fraco, pela própria natureza do governo, é sábia a instituição de
magistrados encarregados de acusar, em nome do público, os infratores
das leis. Mas, todo governo, republicano ou monárquico, deve infligir ao
caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.
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X. DOS INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS
N OSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos, isto é, os que se
fazem sobre o fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos
jurisconsultos, só se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime
foi cometido e sobre as circunstâncias que o acompanham.
Um juiz não pode, contudo, permitir as questões diretas, que
sugiram ao acusado uma resposta imediata. O juiz que interroga, dizem os
criminalistas, só deve ir ao fato indiretamente, e nunca em linha reta.
Se se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado
uma resposta que o salve, ou por que foi considerada coisa monstruosa e
contra a natureza um homem acusar-se a si mesmo, qualquer que tenha sido
o fim visado com a proibição dos interrogatórios sugestivos, fez-se cair
as leis numa contradição bem notória, pois que ao mesmo tempo se
autorizou a tortura.
Haverá, com efeito, interrogatório mais sugestivo do que a
dor? O celerado robusto, que pode evitar uma pena longa e rigorosa,
sofrendo com força tormentos de um instante, guarda um silêncio
obstinado e se vê absolvido. Mas, a questão arranca ao homem fraco uma
confissão pela qual ele se livra da dor presente, que o afeta mais
fortemente do que todos os males futuros.
E, se um interrogatório especial é contrário à natureza,
obrigando o acusado a acusar-se a si mesmo, não será ele constrangido a
isso mais violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor? Os
homens, porém, se ocupam muito mais, em sua norma de conduta, com a
diferença das palavras do que com a das coisas.
Observemos, finalmente, que aquele que se obstina a não
responder ao interrogatório a que é submetido merece sofrer uma pena que
deve ser fixada pelas leis.
É mister que essa pena seja muito pesada; porque o silêncio de
um criminoso, perante o juiz que o interroga, é para a sociedade um
escândalo e a justiça uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto
possível.
Mas, essa pena particular já não é necessária quando o crime
já foi constatado e o criminoso convencido, pois nesse caso o
interrogatório se torna inútil. Semelhantemente, as confissões do
acusado não são necessárias quando provas suficientes demonstraram que
ele é evidentemente culpado do crime de que se trata. Este último caso é
o mais ordinário; e a experiência mostra que, na maior parte dos
processos criminais, os culpados negam tudo.
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XI. DOS JURAMENTOS
O UTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de
um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior
interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai
contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais das vezes, a voz
do interesse não abafasse no coração humano a da religião!
A história de todos os séculos prova que esse dom sagrado do
céu é a coisa de que mais se abusa. E como a respeitarão os celerados,
se ela é diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sábios e
mais virtuosos?
Os motivos que a religião opõe ao temor dos tormentos e ao
amor à vida são quase sempre fracos demais, porque não impressionam os
sentidos. As coisas do céu estão submetidas a leis inteiramente diversas
das da terra. Porque comprometer essas leis umas com as outras? Porque
colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus, ou perder-se? É
não deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir do
juramento. Destrói-se dessa forma toda a força dos sentimentos
religiosos, único apoio da honestidade no coração da maior parte dos
homens; e pouco a pouco os juramentos não são mais do que uma simples
formalidade sem conseqüências.
Consulte-se a experiência e se reconhecerá que os juramentos
são inúteis, pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento
faz o acusado dizer a verdade.
A razão faz ver que assim deve ser, porque todas as leis
opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente
funestas.
Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse
diretamente no meio das águas de um rio para interromper-lhe o curso: ou
o dique é imediatamente derrubado pela torrente que o leva, ou se forma
debaixo dele um abismo que o mina e o destrói insensivelmente.
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XII. DA QUESTÃO OU TORTURA
É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a
tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele
a confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu,
quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado,
mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas
incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia.
Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do
juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que
ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de
acordo. O direito da força só pode, pois, autorizar um juiz a infligir
uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou
culpado.
Eis uma proposição bem simples: ou o delito é certo, ou é
incerto. Se é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a
tortura é inútil, pois já não se tem necessidade das confissões do
acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo atormentar um inocente?
Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se
provou.
Qual o fim político dos castigos? o terror que imprimem nos
corações inclinados ao crime.
Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplícios secretos
que a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto
ao inocente como ao culpado?
Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem
sempre é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da
incerteza.
Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode
ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens
cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade.
Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo
temor ou pela virtude, se é provável que um cidadão prefira segui-las a
violá-las, o juiz que ordena a tortura expõe-se constantemente a
atormentar inocentes.
Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem
seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos
tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do
infeliz! A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz: “Homens,
resisti à dor. A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser, e o
direito inalienável de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vós um
sentimento inteiramente contrário; quero inspirar-vos um ódio de vós
mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais
enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos
dilaceração os músculos... ”
Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da
bárbara legislação dos nossos antepassados, que honravam com o nome de
julgamentos de Deus as provas de fogo, as da água fervendo e a sorte
incerta dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, cuja origem
está no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada
instante, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens!
A única diferença existente entre a tortura e as provas de
fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar,
ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior,
considerada como prova do crime.
Todavia, essa diferença é mais aparente do que real. O acusado
é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de
impedir, sem fraude, os efeitos do fogo e da água fervendo.
Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das
impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é
limitada. Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar
todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra
atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para
evitar os tormentos atuais.
Dessa forma, o acusado já não pode deixar de responder, pois
não poderia escapar às impressões do fogo e da água.
O inocente exclamará, então, que é culpado, para fazer cessar
torturas que já não pode suportar; e o mesmo meio empregado para
distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre
ambos.
A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente
fraco e de absolver o celerado robusto. É esse, de ordinário, o
resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a
verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mau grado a
dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos,
vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.
De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados,
aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido; o mais
fraco, porém, será condenado em virtude deste raciocínio: “Eu,
juiz, preciso encontrar um culpado. Tu, que és vigoroso, soubeste
resistir à dor, e por isso eu te absolvo. Tu, que és fraco, cedeste à
força dos tormentos; portanto, eu te condeno. Bem sei que uma confissão
arrancada pela violência da tortura não tem valor algum; mais, se não
confirmares agora o que confessaste, far-te-ei atormentar de
novo”.
O resultado da questão depende, pois, de temperamento e de
cálculo, que varia em cada homem na proporção de sua força e
sensibilidade; de maneira que, para prever o resultado da tortura,
bastaria resolver o problema seguinte, mais digno de um matemático do
que de um juiz: “Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade
das fibras de um acusado, achar o grau de dor que o obrigará a
confessar-se culpado de determinado crime”.
Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se tão
dificilmente a distinguem no ar, nos gestos e na fisionomia de um homem
tranqüilo, como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões
da dor, quando todos os sinais, que traem às vezes a verdade na fronte
dos culpados, estiverem alterados e confundidos?
Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos
movimentos pelos quais se distingue, às vezes, a verdade da mentira.
Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante
notável: é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado.
Com efeito, o inocente submetido à questão tem tudo contra si: ou será
condenado, se confessar o crime que não cometeu, ou será absolvido, mas
depois de sofrer tormentos que não mereceu.
O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável:
será absolvido se suportar a tortura com firmeza, e evitará os suplícios
de que foi ameaçado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o
inocente tem tudo que perder, o culpado só pode ganhar.
Essas verdades são sentidas, afinal, embora confusamente,
pelos próprios legisladores; mas, nem por isso suprimiram a tortura.
Limitam-se a achar que as confissões do acusado pelos tormentos são
nulas se não forem em seguida confirmadas pelo juramento. Se, porém,
recusar-se a confirmá-las, será torturado de novo.
Em alguns países e segundo certos jurisconsultos, essas
odiosas violências não são permitidas mais do que três vezes; em outros,
porém, e segundo outros doutores, o direito de torturar fica
inteiramente à discrição do juiz.
É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis
exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas.
Não há povo, não há século que não possa citar os seus.
Os homens são sempre os mesmos: vêem as coisas presentes sem
preocupar-se com as conseqüências. Não há homem que, elevando suas
idéias além das primeiras necessidades da vida, não tenha ouvido a voz
interior da natureza chamá-lo a si e não tenha sido tentado a se lançar
de novo nos braços dela. Mas, o uso, esse tirano das almas vulgares, o
comprime e o retém no erro.
O segundo motivo, pelo qual se submete à questão um homem que
se supõe culpado, é a esperança de esclarecer as contradições em que ele
caiu nos interrogatórios que o fizeram sofrer. Mas, o medo do suplício,
a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado, a solenidade dos
processos, a majestade do juiz, a própria ignorância, igualmente comum à
maior parte dos acusados inocentes ou culpados, são outras tantas razões
para fazer cair em contradição, não só a inocência que treme como o
crime que procura ocultar-se.
Poder-se-ia crer que as contradições, tão ordinárias no homem,
ainda mesmo quando este tem o espírito tranqüilo, não se multiplicarão
nesses momentos de perturbação, nos quais a idéia de escapar a um perigo
iminente absorve toda a alma?
Em terceiro lugar, submeter um acusado à tortura, para
descobrir se ele é culpado de outros crimes além daquele de que é
acusado, é fazer este odioso raciocínio: “Tu és culpado de um
delito; é, pois, possível que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita
me preocupa; quero certificar-me; vou empregar minha prova de verdade.
As leis te farão sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias
cometer e por aqueles dos quais eu quero considerar-te culpado”.
Aplica-se igualmente a questão a um acusado para descobrir os
seus cúmplices. Mas, se está provado que a tortura não é nada menos do
que um meio certo de descobrir a verdade, como fará ela conhecer os
cúmplices, quando esse conhecimento é uma das verdades que se procuram?
É certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente
acusará a outrem.
Além disso, será justo atormentar um homem pelos crimes de
outro homem? Não podem descobrir-se os cúmplices pelos interrogatórios
do acusado e das testemunhas, pelo exame das provas e do corpo de
delito, em suma, por todos os meios empregados para constatar o delito?
Os cúmplices fogem quase sempre, logo que o companheiro é
preso. Só a incerteza da sorte que os espera condena-os ao exílio e
livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles; ao passo
que o suplício do culpado que ela tem nas mãos amedronta os outros
homens e os desvia do crime, sendo esse o único fim dos castigos.
A pretensa necessidade de purgar a infâmia é ainda um dos
absurdos motivos do uso das torturas. Um homem declarado infame pelas
leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os
ossos? Poderá a dor, que é uma sensação, destruir a infâmia, que é uma
combinação moral? Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto
que deponha nele tudo o que tem de impuro?
Em verdade, abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no
século XVIII.
A infâmia não é um sentimento sujeito às leis ou regulado pela
razão. É obra exclusiva da opinião. Ora, como a tortura torna infame
aquele que a sofre, é absurdo que se queira lavar desse modo a infâmia
com a própria infâmia.
Não é difícil remontar a origem dessa lei estranha, porque os
absurdos adotados por uma nação inteira se apoiam sempre em outras
idéias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nação. O uso de purgar a
infâmia pela tortura parece ter sua fonte nas práticas da religião, que
tanta influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países e
de todos os tempos. A fé nos ensina que as nódoas contraídas pela
fraqueza humana, quando não mereceram a cólera eterna do Ser supremo,
são purificadas em outro mundo por um fogo incompreensível. Ora, a
infâmia é uma nódoa civil; e, uma vez que a dor e o fogo do purgatório
apagam as manchas espirituais, porque os tormentos da questão não
tirariam a nódoa civil da infâmia?
Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao
uso que observam certos tribunais de exigir as confissões do culpado
como essenciais para sua condenação. Tal uso parece tirado do misterioso
tribunal da penitência, no qual a confissão dos pecados é parte
necessária dos sacramentos.
É dessa forma que os homens abusam das luzes da revelação; e,
como essas luzes são as únicas que iluminam os séculos da ignorância, a
elas é que a dócil humanidade recorreu em todas as ocasiões, mas para
fazer as aplicações mais falsas e mais infelizes.
A solidez dos princípios que expusemos neste capítulo era
conhecida dos legisladores romanos, que só submetiam à tortura os
escravos, espécie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas
vantagens da sociedade civil. Esses princípios foram adotados na
Inglaterra, nação que prova a excelência de suas leis pelos seus
progressos nas ciências, pela superioridade do seu comércio, pela
extensão de suas riquezas, por seu poder e por freqüentes exemplos de
coragem e de virtude política.
A Suécia, igualmente convencida da injustiça da tortura, já
não permite o seu uso. Esse infame costume foi abolido por um dos mais
sábios monarcas da Europa (12) , que elevou a filosofia ao trono e que,
legislador benévolo, amigo dos súditos, os tornou iguais e livres sob a
dependência das leis; única liberdade que homens razoáveis podem esperar
da sociedade; única igualdade que esta pode admitir.
Enfim, as leis militares não admitiram a tortura; e, se esta
pudesse existir em alguma parte, seria sem dúvida nos exércitos,
compostos em grande parte da escória das nações.
Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso!
São homens endurecidos nos morticínios e familiarizados com o sangue que
dão aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com
mais humanidade!
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XIII. DA DURAÇÃO DO PROCESSO E DA PRESCR IÇÃO
Q UANDO o delito é constatado e as provas são certas, é justo conceder
ao acusado o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possível; é
preciso, porém, que esse tempo seja bastante curto para não retardar
demais o castigo que deve seguir de perto o crime, se se quiser que o
mesmo seja um freio útil contra os celerados.
Um mal entendido amor da humanidade poderá condenar logo essa
presteza, a qual, porém, será aprovada pelos que tiverem refletido sobre
os perigos múltiplos que as extremas procrastinações da legislação fazem
correr à inocência.
Cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se
deve empregar para a investigação das provas do delito, e o que se deve
conceder ao acusado para sua defesa. Se o juiz tivesse esse direito,
estaria exercendo as funções do legislador.
Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste
por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados, não deve
haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo
pela fuga. Não é esse, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco
consideráveis: é mister fixar um tempo após o qual o acusado, bastante
punido pelo exílio voluntário, possa reaparecer sem recear novos
castigos.
Com efeito, a obscuridade que envolveu por muito tempo o
delito diminui muito a necessidade do exemplo, e permite devolver ao
cidadão sua condição e seus direitos com o poder de torná-lo melhor.
Só posso indicar aqui princípios gerais. Para fazer sua
aplicação precisa, é mister considerar a legislação existente, os usos
do país, as circunstâncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo
que reconhecesse as vantagens das penas moderadas, se as leis
abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da
prescrição segundo a gravidade do delito, se a prisão provisória e o
exílio voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo
culpado, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de
castigos suaves para um grande número de delitos.
Mas, o tempo que se emprega na investigação das provas e o que
fixa a prescrição não devem ser prolongados em razão da gravidade do
crime que se persegue, porque, enquanto um crime não está provado,
quanto mais atroz, menos verossímil é ele. Será preciso, pois, às vezes,
reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a
prescrição.
Esse princípio parece, à primeira vista, contraditório em
relação ao que estabeleci mais acima, e segundo o qual podem aplicar-se
penas iguais para crimes diferentes, considerando como partes do castigo
o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a sentença. Procurarei
explicar-me com mais clareza.
Podem distinguir-se duas espécies de delitos. A primeira é a
dos crimes atrozes, que começa pelo homicídio e que compreende toda a
progressão dos mais horríveis assassínios. Incluiremos na segunda
espécie os delitos menos hediondos do que o homicídio.
Essa distinção é tirada da natureza. A segurança das pessoas é
um direito natural; a segurança dos bens é um direito da sociedade. Há
bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no coração o
sentimento natural da compaixão que o desvia do assassínio. Mas, como
cada um é ávido de buscar o seu bem-estar, como o direito de propriedade
não está gravado nos corações, sendo simples obra das convenções
sociais, há uma porção de motivos que induzem os homens a violar tais
convenções.
Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas
duas espécies de delitos, é preciso colocá-las sobre bases diferentes.
Nos grandes crimes, pela razão mesma de que são mais raros, deve
diminuir-se a duração da instrução e do processo, porque a inocência do
acusado é mais provável do que o crime. Deve-se, porém, prolongar o
tempo da prescrição.
Por esse meio, que acelera a sentença definitiva, tira-se aos
maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores
são os crimes.
Ao contrário, nos delitos menos consideráveis e mais comuns, é
preciso prolongar o tempo dos processos, porque a inocência do acusado é
menos provável, e diminuir o tempo fixado para a prescrição, porque a
impunidade é menos perigosa.
É mister, igualmente, notar que, se não se atender a isso,
essa diferença de processo entre as duas espécies de delitos pode dar ao
criminoso a esperança da impunidade, esperança tanto mais fundada quanto
o crime for mais hediondo e, portanto, mais verossímil. Observemos,
porém, que um acusado solto por falta de provas não é nem absolvido nem
condenado; que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a
novo exame, se se descobrirem novos indícios do seu delito antes de
terminar o tempo fixado para a prescrição, segundo o crime cometido.
Tal é, pelo menos ao meu ver, o critério que se poderia seguir
para preservar ao mesmo tempo a segurança dos cidadãos e a sua
liberdade, sem favorecer uma em detrimento da outra. Esses dois bens são
igualmente patrimônio inalienável de todos os cidadãos; e ambos estão
cercados de perigos quando a segurança individual é abandonada ao
capricho de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem
tumultuosa.
Cometem-se na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo
comuns e difíceis de constatar. Desde então, pois é quase impossível
provar tais crimes, a inocência é provável perante a lei. E, como a
esperança da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espécies
de delitos, que têm todos causas diferentes, a impunidade raramente é
perigosa. Nesse caso, podem, pois, diminuir-se igualmente o tempo dos
processos e o da prescrição.
Mas, segundo os princípios aceitos, é principalmente para os
crimes difíceis de provar, como o adultério, a pederastia, que se
admitem arbitrariamente as presunções, as conjecturas, as semiprovas,
como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semi-culpado, e merecer
ser semi-absolvido ou semi-punido!
É sobretudo nesse gênero de delitos que se exercem as
crueldades da tortura sobre o acusado, sobre as testemunhas, sobre a
família inteira do infeliz de quem se suspeita, segundo as odiosas
lições de alguns criminalistas, que escreveram, com fria barbárie,
compilações de iniqüidades que ousam apresentar como regras aos
magistrados e como leis às nações.
Quando se reflete sobre todas essas coisas, é-se forçado a
reconhecer com amargura que a razão quase nunca tem sido consultada nas
leis que se deram aos povos. Os crimes mais hediondos, os delitos mais
obscuros e mais quiméricos, e portanto os mais inverossímeis, são
precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas
e indícios menos sólidos e mais equívocos. Dizer-se-ia que as leis e o
magistrado só têm interesse em descobrir um crime, e não em procurar a
verdade; e que o legislador não vê que se expõe constantemente ao risco
de condenar um inocente, pronunciando-se sobre crimes inverossímeis ou
mal provados.
À maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente
as grandes ações e os grandes crimes, e que traz quase sempre juntas as
virtudes magnânimas e os crimes monstruosos, nos Estados que só se
mantêm pela atividade do governo, pelo orgulho nacional e pelo concurso
das paixões pelo bem público.
Quanto às nações cujo poderio é consolidado e constantemente
sustentado por boas leis, as paixões enfraquecidas parecem mais capazes
de manter a forma de governo estabelecida do que de melhorá-la. Daí
resulta uma conseqüência importante: que os grandes crimes nem sempre
são a prova da decadência de um povo.
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XIV. DOS CRIMES COMEÇADOS; DOS CÚMPLICES; DA IMPUNIDADE
S E BEM que as leis não possam punir a intenção, não é menos verdadeira
que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de
cometê-lo, merece um castigo, mas menos grande do que o que seria
aplicado se o crime tivesse sido cometido.
Esse castigo é necessário, porque é importante prevenir mesmo
as primeiras tentativas dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo
entre a tentativa de um delito e a sua execução, é justo reservar uma
pena maior ao crime consumado, para deixar àquele que apenas começou o
crime alguns motivos que o impeçam de acabá-lo.
Deve seguir-se a mesma gradação nas penas, em relação aos
cúmplices, se estes não foram todos executantes imediatos.
Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum,
quanto maior é o perigo, tanto mais procurarão torná-lo igual para
todos. Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do
que os simples cúmplices, seria mais difícil aos que meditam um atentado
encontrar entre eles um homem que quisesse executá-lo, porque o risco
seria maior, em virtude da diferença das penas. Há, contudo, um caso em
que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e é quando o
executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa particular;
como a diferença do risco foi compensada pela diferença das vantagens, o
castigo deve ser igual.
Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas, reflita-se
que é importantíssimo que as leis deixem aos cúmplices da má ação o
mínimo de meios possível para que se ponham de acordo.
Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um
grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta
certas vantagens; mas, não está isento de perigos, de vez que a
sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna aos próprios
celerados. Ela introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que
os crimes de energia e de coragem, porque a coragem é pouco comum e
espera apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público, ao
passo que a covardia, muito mais geral, é um contágio que infecta
rapidamente todas as almas.
O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime
mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as
leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do próprio celerado
que as violou.
Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que
trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado
quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados.
Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as
leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções
particulares.
Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a
todo cúmplice que revela um crime, seria preferível a uma declaração
especial num caso particular: preveniria a união dos maus, pelo temor
recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os
tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há
casos em que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso
acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o
banimento do delator.
É, porém, em vão que procuro abafar os remorsos que me
afligem, quando autorizo as santas leis, fiadoras sagradas da confiança
pública, base respeitável dos costumes, a proteger a perfídia, a
legitimar a traição. E que opróbrio para uma nação, se os seus
magistrados, tornados infiéis, faltassem à promessa que fizeram e se
apoiassem vergonhosamente em vãs sutilezas, para levar ao suplício
aquele que respondeu ao convite das leis!...
Esses monstruosos exemplos não são raros; eis porque tanta
gente só vê na sociedade política uma máquina complicada, na qual os
mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho.
Eis também o que multiplica esses homens frios, insensíveis a
tudo o que encanta as almas ternas, que só experimentam sensações
calculadas e que, todavia, sabem excitar nos outros os sentimentos mais
caros e as paixões mais fortes, quando estas são úteis aos seus
projetos; semelhantes ao músico hábil que, sem nada sentir ele próprio,
tira do instrumento que domina sons tocantes. ou terríveis.
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XV. DA MODERAÇÃO DAS PENAS
A S VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das
penas não pode ser atormentar um ser sensível, nem fazer que um crime
não cometido seja cometido.
Como pode um corpo político, que, longe de se entregar às
paixões, deve ocupar-se exclusivamente com pôr um freio nos
particulares, exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do
furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Poderão os gritos de um
infeliz nos tormentos retirar do seio do passado, que não volta mais,
uma ação já cometida? Não. Os castigos têm por fim único impedir o
culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos
da senda do crime.
Entre as penas, e na maneira de aplicá-las proporcionalmente
aos delitos, é mister, pois, escolher os meios que devem causar no
espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo
tempo, menos cruel no corpo do culpado.
Quem não estremece de horror ao ver na história tantos
tormentos atrozes e inúteis, inventados e empregados friamente por
monstros que se davam o nome de sábios? Quem poderia deixar de tremer
até ao fundo da alma, ao ver os milhares de infelizes que o desespero
força a retomar a vida selvagem, para escapar a males insuportáveis
causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e
ultrajaram a multidão, para favorecer unicamente um pequeno número de
homens privilegiados?
Mas, a superstição e a tirania os perseguem; acusam-nos de
crimes impossíveis ou imaginários; ou então são culpados, mas somente de
terem sido fiéis às leis da natureza. Não importa! Homens dotados dos
mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgá-los
criminosos, têm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade,
aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão
fanática que goza lentamente com suas dores.
Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso
será o culpado para evitá-los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à
pena merecida pelo primeiro.
Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram
postos em prática, são também aqueles em que se viram os crimes mais
horríveis. O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao
legislador, punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida. Do alto
do trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos só
imolavam os tiranos para possuírem novos.
À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma,
semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os
cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se
habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades
multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda
e pela força do que antes o eram pela prisão.
Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar,
basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do
crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que
precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir.
Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por
conseguinte, tirânica.
Os males que os homens conhecem por funesta experiência
regularão melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram. Suponde
duas nações entre aquelas em que as penas são proporcionais aos delitos.
Sendo a escravidão perpétua o maior castigo em uma, e o suplício o maior
em outra, é certo que essas duas penas inspirarão em cada uma igual
terror.
E, se houvesse uma razão para transportar para o primeiro povo
os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo, a mesma razão
conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplícios, passando
insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais
requintados, em suma, para o último refinamento da ciência dos tiranos.
A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos,
contrários ao fim do seu estabelecimento, que é prevenir o crime.
Em primeiro lugar, é muito difícil estabelecer uma justa
proporção entre os delitos e as penas; porque, embora uma crueldade
industriosa tenha. multiplicado as espécies de tormentos, nenhum
suplício pode ultrapassar o último grau da força humana, limitada pela
sensibilidade e a organização do corpo do homem. Além desses limites, se
surgirem crimes mais hediondos, onde se encontrarão penas bastante
cruéis?
Em segundo lugar, os suplícios mais horríveis podem acarretar
às vezes a impunidade. A energia da natureza humana é circunscrita no
mal como no bem. Espetáculos demasiado bárbaros só podem ser o resultado
dos furores passageiros de um tirano, e não ser sustentados por um
sistema constante de legislação. Se as leis são cruéis, ou logo serão
modificadas, ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune.
Termino por esta reflexão: que o rigor das penas deve ser
relativo ao estado atual da nação. São necessárias impressões fortes e
sensíveis para impressionar o espírito grosseiro de um povo que sai do
estado selvagem. Para abater o leão furioso, é necessário o raio, cujo
ruído só faz irritá-lo. Mas, à medida que as almas se abrandam no estado
de sociedade, o homem se torna mais sensível; e, se se quiser conservar
as mesmas relações entre o objeto e a sensação, as penas devem ser menos
rigorosas.
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XVI. DA PENA DE MORTE
A NTE o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os
homens melhores, eu quero examinar se a pena de morte é verdadeiramente
útil e se é justa num governo sábio.
Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus
semelhantes? Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis
que protegem.
A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas
porções de liberdade que cada um cedeu à sociedade. Representam a
vontade geral, resultado da união das vontades particulares. Mas, quem
já pensou em dar a outros homens o direito de tirar-lhe a vida? Será o
caso de supor que, no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua
liberdade, tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência, o
mais precioso de todos os bens?
Se assim fosse, como conciliar esse princípio com a máxima que
proíbe o suicídio? Ou o homem tem o direito de se matar, ou não pode
ceder esse direito a outrem nem à sociedade inteira.
A pena de morte não se apoia, assim, em nenhum direito. É uma
guerra declarada a um cidadão pela nação, que julga a destruição desse
cidadão necessária ou útil. Se eu provar, porém, que a morte não é útil
nem necessária, terei ganho a causa da humanidade.
A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por
dois motivos: nos momentos de confusão em que uma nação fica na
alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade, nas épocas de
confusão, em que as leis são substituídas pela desordem, e quando um
cidadão, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por suas relações
e seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo sua
existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido.
Mas, sob o reino tranqüilo das leis, sob uma forma de governo
aprovada pela nação inteira, num Estado bem defendido no exterior e
sustentado no interior pela força e pela opinião talvez mais poderosa do
que a própria força, num país em que a autoridade é exercida pelo
próprio soberano, em que as riquezas só podem, proporcionar prazeres e
não poder, não pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um
cidadão, a menos que a morte seja o único freio capaz de impedir novos
crimes.
A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte
nunca deteve celerados determinados a fazer mal. Essa verdade se apoia
no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da
Rússia, a benfeitora Izabel (13) , que deu aos chefes dos povos uma
lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a pátria só
alcança ao preço do sangue dos seus filhos.
Se os homens, a quem a linguagem da razão é sempre suspeita e
que só se rendem à autoridade dos antigos usos, se recusam à evidência
dessas verdades, bastar-lhes-á interrogar a natureza e consultar o
próprio coração para testemunhar os princípios que acabam de ser
estabelecidos.
O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano
do que a duração da pena, porque a nossa sensibilidade é mais fácil e
mais constantemente afetada por uma impressão ligeira, mas freqüente, do
que por um abalo violento, mas passageiro. Todo ser sensível está
submetido ao império do hábito; e, como é este que ensina o homem a
falar, a andar, a satisfazer suas necessidades, é também ele que grava
no coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas.
O espetáculo atroz, mas momentâneo, da morte de um celerado é
para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo
de um homem privado de sua liberdade, tornado até certo ponto uma besta
de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou à
sociedade. Essa volta freqüente do espectador a si mesmo: “Se eu
cometesse um crime, estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável
condição”, – essa idéia terrível assombraria mais fortemente
os espíritos do que o medo da morte, que se vê apenas um instante numa
obscura distância que lhe enfraquece o horror.
A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode
resistir à ação do tempo e das paixões, que logo apagam da memória dos
homens as coisas mais essenciais.
Por via de regra, as paixões violentas surpreendem vivamente,
mas o seu efeito não dura. Produzirão uma dessas revoluções súbitas que
fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano. Mas, num
governo tranqüilo e livre, são necessárias menos paixões violentas do
que impressões duráveis.
Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso, o
suplício deste é apenas um espetáculo; para a minoria, é um objeto de
piedade mesclado de indignação. Esses dois sentimentos ocupam a alma do
espectador, bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de
morte. Mas, as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores
o sentimento do medo.
No primeiro caso, sucede ao espectador do suplício o mesmo que
ao espectador do drama; e, assim como o avaro retorna ao seu cofre, o
homem violento e injusto retorna às suas injustiças.
O legislador deve, por conseguinte, pôr limites ao rigor das
penas, quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece
ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime.
Para que uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor
bastante para desviar os homens do crime. Ora, não há homem que possa
vacilar entre o crime, mau grado a vantagem que este prometa, e o risco
de perder para sempre a liberdade.
Assim, pois, a escravidão perpétua, substituindo a pena de
morte, tem todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais
determinado. Digo mais: encara-se muitas vezes a morte de modo tranqüilo
e firme, uns por fanatismo, outros por essa vaidade que nos acompanha
mesmo além do túmulo. Alguns, desesperados, fatigados da vida, vêem na
morte um meio de se livrar da miséria. Mas, o fanatismo e a vaidade
desaparecem nas cadeias, sob os golpes, em meio às barras de ferro. O
desespero não lhes põe fim aos males, mas os começa.
Nossa alma resiste mais à violência das dores extremas, apenas
passageiras, do que ao tempo e à continuidade do desgosto. Todas as
forças da alma, reunindo-se contra males passageiros, podem
enfraquecer-lhes a ação; mas, todas as suas molas acabam por ceder a
penas longas e constantes.
Numa nação em que a pena de morte é empregada, é forçoso, para
cada exemplo que se dá, um novo crime; ao passo que a escravidão
perpétua de um único culpado põe sob os olhos do povo um exemplo que
subsiste sempre, e se repete.
Se é mister que os homens tenham sempre sob os olhos os
efeitos do poder das leis, é preciso que os suplícios sejam freqüentes,
e desde então é preciso também que os crimes se multipliquem; o que
provará que a pena de morte não causa toda a impressão que deveria
produzir, e que é inútil quando julgada necessária.
Dir-se-á que a escravidão perpétua é também uma pena rigorosa
e, por conseguinte, tão cruel quanto a morte. Responderei que, reunindo
num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo, sua vida
seria talvez mais horrível do que os suplícios mais atrozes; mas, esses
momentos ficam espalhados por todo o curso da vida, ao passo que a pena
de morte exerce todas as suas forças num só instante.
A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que
amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre, porque o
primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes, ao passo que o
segundo se alheia de suas penas futuras, pelo sentimento da infelicidade
presente.
A imaginação aumenta todos os males. Aquele que sofre encontra
em sua alma, endurecida pelo hábito da desgraça, consolações e recursos
que as testemunhas dos seus males não conhecem, porque julgam segundo
sua sensibilidade do momento.
É somente por uma boa educação que se aprende a desenvolver e
a dirigir os sentimentos do próprio coração. Mas, embora os celerados
não possam perceber os seus princípios, nem por isso deixam de agir
segundo um certo raciocínio. Ora, eis mais ou menos, como raciocina um
assassino ou um ladrão, que só se afasta do crime pelo medo do poder ou
da roda:
“Quais são, afinal, as leis que devo respeitar e que
deixam tão grande intervalo entre mim e o rico? O homem opulento
recusa-me com dureza a pequena esmola que lhe peço e me manda para o
trabalho, que eu jamais conheci. Quem fez essas leis? Homens ricos e
poderosos, que jamais se dignaram de visitar a miserável choupana do
pobre, que não viram repartir um pão grosseiro aos seus pobres filhos
famintos e à sua mãe desolada. Rompamos as convenções, vantajosas
somente para alguns tiranos covardes, mas funestas para a maioria.
Ataquemos a injustiça em sua fonte. Sim retornarei ao meu estado de
independência natural, viverei livre, provarei por algum tempo os frutos
felizes da minha astúcia e da minha coragem. À frente de alguns homens
determinados como eu, corrigirei os enganos da fortuna e verei meus
tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto
insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães. Talvez venha uma época de
dor e de arrependimento, mas essa época será curta; e por um dia de
sofrimento, terei gozado vários anos de liberdade e de prazeres”.
Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz,
não o intimidará; diminuirá mesmo aos seus olhos o horror do último
suplício, oferecendo-lhe a esperança de um arrependimento fácil e da
felicidade eterna que é seu fruto. Mas aquele que tem diante dos olhos
um grande número de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na
escravidão e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais
fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma
comparação útil de todos os males, do êxito incerto do crime e do pouco
tempo que terá para gozar.
O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da
imprudência impressiona-o muito mais do que os suplícios, que podem
endurecê-lo, mas não corrigi-lo.
A pena de morte é ainda funesta à sociedade, pelos exemplos de
crueldade que dá aos homens.
Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o
sangue humano, as leis, cujo fim é suavizar os costumes, deveriam
multiplicar essa barbaria, tanto mais horrível quanto dá a morte com
mais aparato e formalidades?
Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade
geral, que detestam e punem o homicídio, ordenem um morticínio público,
para desviar os cidadãos do assassínio?
Quais são as leis mais justas e mais úteis? São as que todos
proporiam e desejariam observar, nesses momentos em que o interesse
particular se cala ou se identifica com o interesse público.
Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte? Está traçado
em caracteres indeléveis nesses movimentos de indignação e de desprezo
que nos inspira a simples visão do carrasco, que não é contudo senão o
executor inocente da vontade pública, um cidadão honesto que contribui
para o bem geral e que defende a segurança do Estado no interior, como o
soldado, a defende no exterior.
Qual é, pois, a origem dessa contradição? E porque esse
sentimento de horror resiste a todos os esforços da razão? É que, numa
parte recôndita da nossa alma, na qual os princípios naturais ainda não
foram alterados, descobrimos um sentimento que nos grita que um homem
não tem nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem, e que só a
necessidade, que estende por toda parte o seu cetro de ferro, pode
dispor da nossa existência.
Que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros
sagrados da justiça fazer arrastar um culpado à morte, com cerimônia,
com tranqüilidade, com indiferença? E, enquanto o infeliz espera o golpe
fatal, por entre convulsões e angústias, o juiz que acaba de o condenar
deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os
prazeres da vida, e talvez louvar-se, com secreta complacência, pela
autoridade que acaba de exercer. Não será o caso de dizer que essas leis
são apenas a máscara da tirania, que essas formalidades cruéis e
refletidas da justiça são simplesmente um pretexto para imolar-nos com
mais confiança, como vítimas sacrificadas ao despotismo insaciável?
O assassínio, que nos aparece como um crime horrível, nós o
vemos cometer friamente e sem remorso. Não poderemos autorizar-nos com
esse exemplo? Pintavam-nos a morte violenta como uma cena terrível, e é
apenas questão de um momento. Será menos ainda para aquele que tiver
coragem de ir-lhe ao encontro e de poupar-se desse modo tudo o que ela
tem de doloroso. Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem
uma cabeça já disposta ao crime, um espírito mais capaz de se deixar
conduzir pelos abusos da religião do que pela religião mesma.
A história dos homens é um imenso oceano de erros, no qual se
vê sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida. Não me oponham, pois,
o exemplo da maior parte das nações, que, em quase todos os tempos,
aplicaram a pena de morte contra certos crimes; esses exemplos nenhuma
força têm contra a verdade que é sempre tempo de reconhecer. Nesse caso,
aprovar-se-iam os sacrifícios humanos, porque estiveram geralmente em
uso entre todos os povos primitivos.
Mas, se descubro alguns povos que se abstiveram, mesmo durante
um curto espaço de tempo do emprego da pena de morte, posso
prevalecer-me disso com razão; pois o destino das grandes verdades é não
brilhar senão com a duração do relâmpago, no meio da longa noite de
trevas que envolve o gênero humano.
Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará
o erro e se tornará apanágio de maioria, em que o gênero humano não será
iluminado somente pelas verdades reveladas.
Sinto quanto a voz fraca de um filósofo será facilmente
abafada pelos gritos tumultuosos dos fanáticos escravos do preconceito.
Mas, o pequeno número de sábios espalhados pela superfície da terra
saberá entender-me; seu coração aprovará meus esforços; e se, mau grado
todos os obstáculos que a afastam do trono, a verdade pudesse penetrar
até aos ouvidos dos príncipes, saibam eles que essa verdade lhes leva os
votos secretos da humanidade inteira; saibam que, se protegerem a
verdade santa, sua glória ofuscará a dos mais famosos conquistadores e a
eqüitativa posteridade colocará seus nomes acima dos Titos (14) , dos
Antoninos (15) e dos Trajanos (16) .
Feliz o gênero humano, se, pela primeira vez, recebesse leis!
Hoje, que vemos elevados nos tronos da Europa príncipes benfeitores,
amigos das virtudes pacíficas, protetores das ciências e das artes, pais
dos seus povos, e cidadãos coroados; quando esses príncipes,
consolidando sua autoridades, trabalham para a felicidade dos seus
súditos, quando destroem esse despotismo intermediário, tanto mais cruel
quanto menos solidamente estabelecido, quando comprimem os tiranos
subalternos que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar até
ao trono, onde seriam escutados; quando se considera que, se tais
príncipes deixam subsistir leis defeituosas, é porque são premidos pela
extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série de
séculos e protegidos por um certo número de homens interessados que
punem: todo cidadão esclarecido deve desejar com ardor que o poder
desses soberanos ainda aumente e se torne bastante grande para
permitir-lhes a reforma de uma legislação funesta.
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XVII. DO BANIMENTO E DAS CONFISCAÇÕES
A QUELE que perturba a tranqüilidade pública, que não obedece às leis,
que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem
mutuamente, esse deve ser excluído da sociedade, isto é, banido.
Parece-me que se poderiam banir aqueles que, acusados de um
crime atroz, são suspeitos de culpa com maior verossimilhança, mas sem
estar plenamente convencidos do crime.
Em casos semelhantes, seria mister que uma lei, a menos
arbitrária e a mais precisa possível, condenasse ao banimento aquele que
pusesse a nação na fatal alternativa de fazer uma injustiça ou de temer
um acusado. Seria mister, igualmente, que essa lei deixasse ao banido o
direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e
recuperar os seus direitos. Seria mister, enfim, que houvesse razões
mais fortes para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para
condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já tivesse sido
chamado à justiça.
Mas, deve aquele que se bane, que se exclui para sempre da
sociedade de que fazia parte, ser ao mesmo tempo privado dos seus bens?
Essa questão pode ser encarada sob diferentes aspectos.
A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento. Deve,
pois, haver casos em que, para proporcionar a pena ao crime, se
confiscarão todos os bens do banido. Em outras circunstâncias, só será
despojado de uma parte de sua fortuna; e, para certos delitos, o
banimento não será acompanhado de nenhuma confiscação. O culpado poderá
perder todos os seus bens, se a lei que pronuncia o banimento declara
rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade; porque desde então o
cidadão está morto, resta somente o homem; e, perante a sociedade, a
morte política de um cidadão deve ter as mesmas conseqüências que a
morte natural.
Segundo essa máxima, dir-se-á talvez que é evidente que os
bens do culpado deveriam reverter para os herdeiros legítimos, e não
para o príncipe; não é nisso, porém, que me apoiarei para desaprovar as
confiscações.
Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscações
punham um freio às vinganças dos particulares banidos, tirando-lhes o
poder de ser nocivos, é que não refletiram que não basta uma pena
produzir algum bem para ser justa. Uma pena só é justa quando
necessária. Um legislador não autorizará nunca uma injustiça útil, se
quer prevenir as invasões da tirania, que vela sem cessar, que seduz e
abusa pelo pretexto falaz de algumas vantagens momentâneas, e que faz
deperecer em pranto e na miséria um povo cuja ruína prepara, para
espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de homens
privilegiados.
O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do
infeliz sem defesa, e faz o inocente sofrer os castigos reservados aos
culpados. Pior ainda, as confiscações podem fazer do homem de bem um
criminoso, pois o levam ao crime, reduzindo-o à indigência e ao
desespero.
E, além disso, não há espetáculo mais hediondo que o de uma
família inteira coberta de infâmia, mergulhada nos horrores da miséria
pelo crime do seu chefe, crime que essa família, submetida à autoridade
do culpado, não poderia prevenir, mesmo que tivesse os meios para tanto.
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XVIII. DA INFÂMIA
A INFÂMIA é um sinal da improbação pública, que priva o culpado da
consideração, da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de
fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país.
Como os efeitos da infâmia não dependem absolutamente das
leis, é mister que a vergonha que a lei inflige se baseie na moral, ou
na opinião pública. Se se tentasse manchar de infâmia uma ação que a
opinião não julga infame, ou a lei deixaria de ser respeitada, ou as
idéias aceitas de probidade e de morai desapareceriam, mau grado todas
as declamações dos moralistas, sempre impotentes contra a força do
exemplo.
Declarar infames ações indiferentes em si mesmas, é diminuir a
infâmia das que efetivamente merecem ser designadas desse modo.
Bem necessário é evitar que se punam com penas corporais e
dolorosas certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos
uma glória. Tal é o fanatismo, que só pode ser reprimido pelo ridículo e
pela vergonha.
Se se humilhar à orgulhosa vaidade dos fanáticos perante uma
grande multidão de espectadores, devem esperar-se felizes efeitos dessa
pena, pois que a própria verdade tem necessidade dos maiores esforços
para se defender, quando é atacada pela arma do ridículo.
Opondo assim a força à força e a opinião à opinião, um
legislador esclarecido dissipa no espírito do povo a admiração que lhe
causa um falso princípio, cujo absurdo lhe foi dissimulado com
raciocínios especiosos.
As penas infamantes devem ser raras, porque o emprego
demasiado freqüente do poder da opinião enfraquece a força da própria
opinião. A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de
pessoas ao mesmo tempo, porque a infâmia de um grande número não é mais,
em breve, a infâmia de ninguém.
Tais são os meios de harmonizar as relações invariáveis das
coisas e de atender à natureza, que, sempre ativa e jamais sujeita aos
limites do tempo, destrói e revoga todas as leis que se afastam dela.
Não é só nas belas-artes que é preciso seguir fielmente a natureza: as
instituições políticas, ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria
e elementos de duração, se fundam na natureza; e a verdadeira política
não é outra coisa senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade
os sentimentos imutáveis do homem.
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XIX. DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA DAS PE NAS
Q UANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto
mais justa e útil ela será. Mais justa. porque poupará ao acusado os
cruéis tormentos da, incerteza, tormentos supérfluos, cujo horror
aumenta para ele na razão da força de imaginação e do sentimento de
fraqueza.
A presteza do julgamento é justa ainda porque, a perda da
liberdade sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na
estrita medida que a necessidade o exige.
Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele
seja julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto
quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a duração. Um cidadão detido só
deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo; e
os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar.
O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for
necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime. O
processo mesmo deve ser conduzido sem protelações. Que contraste
hediondo entre a indolência de um juiz e a angústia de um acusado! De um
lado, um magistrado insensível, que passa os dias no bem-estar e nos
prazeres, e de outro um infeliz que definha, a chorar no fundo de uma
masmorra abominável.
Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral
impressionantes e sensíveis para os que o testemunharam; haverá, porém,
necessidade de que esse castigo seja tão cruel para quem o sofre? Quando
os homens se reuniram em sociedade, foi para só se sujeitarem aos
mínimos males possíveis; e não há país que possa negar esse princípio
incontestável.
Eu disse que a presteza da pena é útil; e é certo que, quanto
menos tempo decorrer entre o delito e a pena, tanto mais os espíritos
ficarão compenetrados da idéia de que não há crimes sem castigo; tanto
mais se habituarão a considerar o crime como a causa da qual o castigo é
o efeito necessário e inseparável.
É a ligação das idéias que sustenta todo o edifício do
entendimento humano. Sem ela, o prazer e a dor seriam sentimentos
isolados, sem efeito, tão cedo esquecidos quanto sentidos. Os homens sem
idéias gerais e princípios universais, isto é, os homens ignorantes e
embrutecidos, não agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais
imediatamente unidas. Negligenciam as relações distantes, e essas idéias
complicadas, que só se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um
objeto, ou aos espíritos esclarecidos. A luz da atenção dissipa no homem
apaixonado as trevas que cercam o vulgar. O homem instruído, acostumado
a percorrer e a comparar rapidamente um grande número de idéias e de
sentimentos opostos, tira do contraste um resultado que constitui a base
de sua conduta, desde então menos incerta e menos perigosa.
É, pois, da maior importância punir prontamente um crime
cometido, se se quiser que, no espírito grosseiro do vulgo, a pintura
sedutora das vantagens de uma ação criminosa desperte imediatamente a
idéia de um castigo inevitável. Uma pena por demais retardada torna
menos estreita a união dessas duas idéias: crime e castigo. Se o
suplício de um acusado causa então alguma impressão, e somente como
espetáculo, pois só se apresenta ao espectador quando o horror do crime,
que contribui para fortificar o horror da pena, já está enfraquecido nos
espíritos.
Poder-se-ia ainda estreitar mais a ligação das idéias de crime
e de castigo, dando à pena toda a conformidade possível com a natureza
do delito, a fim de que o receio de um castigo especial afaste o
espírito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime vantajoso.
É preciso que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do
homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime.
Entre vários povos, punem-se os crimes pouco consideráveis com
a prisão ou com a escravidão num país distante, isto é, manda-se o
culpado levar um exemplo inútil a uma sociedade que ele não ofendeu.
Como os homens não se entregam, a princípio, aos maiores
crimes, a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado,
acusado de algum crime monstruoso, não experimentam nenhum sentimento de
terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer. Ao
contrário, a punição pública dos pequenos delitos mais comuns
causar-lhe-á na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes
crimes, desviando-os primeiro dos que o são menos.
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XX. QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITÁVEL. – DAS GRAÇAS
N ÃO é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança,
mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa
severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são
brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável causará
sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício
terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de
impunidade.
O homem treme à idéia dos menores males, quando vê a
impossibilidade de evitá-los; ao passo que a esperança, doce filha do
céu, que tantas vezes nos proporciona todos os bens, afasta sempre a
idéia dos tormentos mais cruéis, por pouco que ela seja sustentada pelo
exemplo da impunidade, que a fraqueza ou o amor do ouro tão
freqüentemente concede.
As vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco
importante, quando o ofendido perdoa. É um ato de benevolência, mas um
ato contrário ao bem público. Um particular pode bem não exigir a
reparação do mal que se lhe fez; mas, o perdão que ele concede não pode
destruir a necessidade do exemplo.
O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em
particular; pertence às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um
cidadão ofendido pode renunciar à sua porção desse direito, mas não tem
nenhum poder sobre a dos outros.
Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis, a demência e
o perdão serão menos necessários. Feliz a nação que não mais lhes desse
o nome de virtudes! A demência, que se tem visto em alguns soberanos
substituir outras qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres
do trono, deveria ser banida de uma legislação sábia na qual as penas
fossem brandas e a justiça feita com formas prontas e regulares.
Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos
abusos de uma jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão
necessários em razão mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das
leis.
O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela
prerrogativa do trono; é o mais precioso atributo do poder soberano;
mas, ao mesmo tempo, é uma improbação tácita das leis existentes. O
soberano que se ocupa com a felicidade pública e que julga contribuir
para ela exercendo o direito de conceder graça, eleva-se então contra o
código criminal, consagrado, mau grado seus vícios, pelos preconceitos
antigos, pelo calhamaço impostor dos comentadores, pelo grave aparelho
das velhas formalidades, enfim, pelo sufrágio dos semi-sábios, sempre
mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sábios.
Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das
leis, devendo manifestar-se no Código e não em julgamentos particulares,
se se deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o
castigo nem sempre é a sua conseqüência necessária, nutre-se neles a
esperança da impunidade; faz-se com que aceitem os suplícios não como
atos de justiça, mas como atos de violência.
Quando o soberano concede graça a um criminoso, não será o
caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e
que, por um ato de cega benevolência, pronuncia um decreto geral de
impunidade?
Sejam, pois, as leis inexoráveis, sejam os executores das leis
inflexíveis; seja, porém, o legislador indulgente e humano. Arquiteto
prudente, dê por base ao seu edifício o amor que todo homem tem ao
próprio bem-estar, e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos
interesses particulares; não se verá, assim, constrangido a recorrer a
leis imperfeitas, a meios pouco refletidos que separam a cada instante
os interesses da sociedade dos cidadãos; não será forçado a elevar sobre
o medo e a desconfiança o simulacro da felicidade pública. Filósofo
profundo e sensível, terá deixado aos seus irmãos o gozo pacífico da
pequena porção de felicidade que o Ser supremo lhes concedeu nesta
terra, que não é mais do que um ponto no meio de todos os mundos.
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XXI. DOS ASILOS
S ERÃO justos os asilos? E será útil o uso estabelecido entre as nações
de permutarem entre si os criminosos?
Em toda a extensão de um Estado político, não deve haver
nenhum lugar fora da dependência das leis. A força destas deve seguir o
cidadão por toda a parte, como a sombra segue o corpo.
Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos; e, como o
melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e
inevitável, os asilos, que representam um abrigo contra a ação das leis,
convidam mais ao crime do que as penas o evitam, do momento em que se
tem a esperança de evitá-los.
Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias, porque,
quando as leis não têm poder, novas potências se formam de ordem comum,
estabelece-se um espírito oposto ao do corpo inteiro da sociedade.
Vê-se, na história de todos os povos, que os asilos foram a
fonte de grandes revoluções nos Estados e nas opiniões humanas.
Pretenderam alguns que, cometido um crime num lugar, isto é,
um ato contrário às leis, teriam estas em toda parte o direito de punir.
Será a qualidade de súdito, nesse caso, um caráter indelével? Será o
nome de súdito pior que o de escravo? E admitir-se-á que um homem habite
um país e seja submetido às leis de outro país? que suas ações fiquem ao
mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas
vezes contraditórias?
Ousou-se dizer, assim, que um crime cometido em Constantinopla
podia ser punido em Paris, porque aquele que ofende uma sociedade humana
merece ter todos os homens por inimigos e deve ser objeto da execração
universal. No entanto, os juizes não são vingadores do gênero humano em
geral; são os defensores das convenções particulares que ligam entre si
um certo número de homens. Um crime só deve ser punido no país onde foi
cometido, porque é somente aí, e não em outra parte, que os homens são
forçados a reparar, pelo exemplo da pena, os funestos efeitos que o
exemplo do crime pode produzir.
Um celerado, cujos crimes precedentes não puderam violar as
leis de uma sociedade da qual não era membro, pode bem ser temido e
expulso dessa sociedade; mas, as leis não podem infligir-lhe outra pena,
pois são feitas somente para punir o mal que lhe é feito, e não o crime
que não as ofende.
Será, pois, útil que as nações permutem reciprocamente entre
si os criminosos? Certamente, a persuasão de não encontrar nenhum lugar
na terra em que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de
preveni-lo. Não ousarei, porém, decidir essa questão, até que as leis,
tornando-se mais conformes aos sentimentos naturais do homem, com penas
mais brandas, impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião, assegurem a
inocência e preservem a virtude das perseguições da inveja; até que a
tirania, relegada ao Oriente, tenha deixado a Europa sob o doce império
da razão, dessa razão eterna que une com um laço indissolúvel os
interesses dos soberanos aos interesses dos povos.
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XXII. DO USO DE PÔR A CABEÇA A PRÊMIO
S ERÁ vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um criminoso,
armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos?
Ou o criminoso saiu do país, ou ainda está nele. No primeiro
caso, excitam-se os cidadãos a cometer um assassínio, a atingir talvez
um inocente, a merecer suplícios. Faz-se uma injúria à nação
estrangeira, espezinha-se-lhe a autoridade, autoriza-se que se façam
semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos.
Se o criminoso ainda está no país cujas leis violou, o governo
que põe sua cabeça a prêmio revela fraqueza. Quando a gente tem força
para defender-se não compra o socorro de outrem.
Além disso, o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula
todas as idéias de moral e de virtude, tão fracas e tão abaladas no
espírito humano. De um lado, as leis punem a traição; de outro,
autorizam-na. O legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e
de amizade, e com a outra recompensa aquele que os quebra. Sempre em
contradição consigo mesmo, ora procura espalhar a confiança e animar os
que duvidam, ora semeia a desconfiança em todos os corações. Para
prevenir um crime, faz nascer cem.
Semelhantes usos só convêm às nações fracas, cujas leis só
servem para sustentar por um momento um edifício de ruínas que todo se
esboroa.
Mas, à medida que as luzes de uma nação se difundem, a boa fé
e a confiança recíproca se tornam necessárias, e a política é, enfim,
constrangida a admiti-las. Então, desmancham-se e previnem-se mais
facilmente as cabalas, os artifícios, as manobras obscuras e indiretas.
Então, também, o interesse geral sai sempre vencedor dos interesses
particulares.
Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos
de ignorância, nos quais a moral particular era sustentada pela moral
pública.
As nações só serão felizes quando a sã moral estiver
estreitamente ligada à política. Mas, leis que recompensam a traição,
que acendem entre os cidadãos uma guerra clandestina, que excitam
suspeitas recíprocas, opor-se-ão sempre a essa união tão necessária da
política e da moral; união que daria aos homens segurança e paz, que
lhes aliviaria a miséria e que traria às nações mais, longos intervalos
de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao presente gozaram.
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XXIII. QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS
O INTERESSE de todos não é somente que se cometam poucos crimes, mais
ainda que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros. Os
meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem, pois, ser
mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode
tornar-se mais comum. Deve. pois, haver uma proporção entre os delitos e
as penas.
Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres
sensíveis; se, entre os motivos que determinam os homens em todas as
suas ações, o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as
recompensas e as penas; se dois crimes que atingem desigualmente a
sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo
que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á mais
facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos; e a distribuição
desigual das penas produzirá a contradição, tão notória quando
freqüente, de que as leis terão de punir os crimes que tiveram feito
nascer.
Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por
exemplo, para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica
um escrito importante, em breve não se fará mais nenhuma diferença entre
esses delitos; destruir-se-ão no coração do homem os sentimentos morais,
obra de muitos séculos, cimentada por ondas de sangue, estabelecida com
lentidão através mil obstáculos, edifício que só se pode elevar com o
socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes
formalidades.
Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se
originam da fermentação contínua das paixões humanas; esses abusos
crescem em razão da população e do choque dos interesses particulares,
que é impossível dirigir em linha reta para o bem público. Não se pode
provar essa asserção com toda a exatidão matemática; pode-se, porém,
apoiá-la com exemplos notáveis.
Lançai os olhos sobre a história, e vereis crescerem os abusos
à medida que os impérios aumentam. Ora, como o espírito nacional se
enfraquece na mesma proporção, o pendor para o crime crescerá em razão
da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo; e a necessidade de
agravar as penas seguirá necessariamente igual progressão.
Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta
impele-nos sempre para o nosso bem estar. Essa impulsão só é
enfraquecida pelos obstáculos que as leis lhe opõem. Todos os diversos
atos do homem são efeitos dessa tendência interior. As penas são os
obstáculos políticos que impedem os funestos efeitos do choque dos
interesses pessoais, sem destruir-lhes a causa, que é o amor de si
mesmo, inseparável da humanidade.
O legislador deve ser um arquiteto hábil, que saiba ao mesmo
tempo empregar todas as forças que podem contribuir para consolidar o
edifício e enfraquecer todas as que possam arruiná-lo.
Supondo-se a necessidade da reunião dos homens em sociedade,
mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada
particular, achar-se-á um progressão de crimes, dos quais o maior será
aquele que tende à destruição da própria sociedade. Os menores delitos
serão as pequenas ofensas feitas aos particulares. Entre esses dois
extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público,
desde o mais criminoso até ao menos passível de culpa.
Se os cálculos exatos pudessem aplicar-se a todas as
combinações obscuras que fazem os homens agir, seria mister procurar e
fixar uma progressão de penas correspondente à progressão dos crimes. O
quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da
escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação.
Bastará, contudo, que o legislador sábio estabeleça divisões
principais na distribuição das penas proporcionadas aos delitos e que,
sobretudo, não aplique os menores castigos aos maiores crimes.
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XXIV. DA MEDIDA DOS DELITOS
J Á observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à
sociedade. Eis aí uma dessas verdades que, embora evidentes para o
espírito menos perspicaz, mas ocultas por um concurso singular de
circunstâncias, só são conhecidas de um pequeno número de pensadores em
todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos.
As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos
abafaram as noções simples e as idéias naturais que constituíam sem
dúvida a filosofia das sociedades primitivas. Mas, se a tirania
comprimiu a natureza por uma ação insensível, ou por impressões
violentas sobre os espíritos da multidão, hoje, enfim, as luzes do nosso
século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo, reconduzindo-nos
aos princípios da filosofia e mostrando-no-los com mais certeza.
Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não
seja perdida e que os princípios naturais reapareçam entre os homens,
mau grado todos os obstáculos que se lhes opõem.
A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete,
como erroneamente o julgaram alguns: porque a intenção do acusado
depende das impressões causadas pelos objetos presentes e das
disposições precedentes da alma. Esses sentimentos variam em todos os
homens e no mesmo indivíduo, com a rápida sucessão das idéias, das
paixões e das circunstâncias.
Se se punisse a intenção, seria preciso ter não só um Código
particular para cada cidadão, mas uma nova lei penal para cada crime.
Muitas vezes, com a melhor das intenções, um cidadão faz à
sociedade os maiores males, ao passo que um outro lhe presta grandes
serviços com a vontade de prejudicar.
Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela
dignidade da pessoa ofendida, de preferência ao mal que possa causar à
sociedade. Se esse método fosse aceito, uma pequena irreverência para
com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassínio
de um monarca, pois a superioridade da natureza divina compensaria
infinitamente a diferença da ofensa.
Outros, finalmente, julgaram o delito tanto mais grave quanto
maior a ofensa, à Divindade. Sentir-se-á facilmente quanto essa opinião
é falsa, se se examinarem com sangue-frio as verdadeiras relações que
unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus.
As primeiras são relações de igualdade. Só a necessidade faz
nascer; do choque das paixões e da posição dos interesses particulares,
a idéia da unidade comum, base da justiça humana. Ao contrário, as
relações que existem entre o homem e Deus são relações de dependência,
que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas, a um
senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo
tempo legislador e juiz, somente ele pode ser a um tempo uma e outra
coisa.
Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu
suas leis, qual será o inseto bastante temerário que ousará vir em
socorro de sua justiça divina, para empreender vingar o ser que se basta
a si mesmo, que os crimes não podem entristecer, que os castigos não
podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante?
A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da
maldade do coração; e, para que os homens pudessem sondar esse abismo,
ser-lhes-ia preciso o socorro da revelação. Como poderiam eles
determinar as penas dos diferentes crimes, sobre princípios cuja base
lhes é desconhecida? Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar
quando Deus pune.
Se os homens ofendem a Deus com o pecado, muitas vezes o
ofendem mais ainda encarregando-se do cuidado de vingá-lo.
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XXV. DIVISÃO DOS DELITOS
H Á crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos que
a representam. Outros atingem o cidadão em sua vida, nos seus bens ou em
sua honra. Outros, finalmente, são atos contrários ao que a lei
prescreve ou proíbe, tendo em vista o bem público.
Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser
considerado como crime, nem punido como tal, senão pelos que descobrem
nisso o seu interesse particular.
Por não se ter sabido guardar esses limites é que se vê em
todas as nações uma oposição entre as leis e a moral, e muitas vezes uma
oposição entre aquelas mesmas. O homem de bem está exposto às penas mais
severas. As palavras vício e virtude não passam de sons vagos. A
existência do cidadão envolve-se de incerteza; e os corpos políticos
caem numa letargia funesta, que os conduz insensivelmente à ruína.
Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis,
sem temer outros inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação
em si mesma. Esse dogma político deveria ser gravado no espírito dos
povos, proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis. Sem
esse dogma sagrado, toda sociedade legítima não pode subsistir por muito
tempo, porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os homens
fizeram de sua independência e de sua liberdade.
É essa opinião que torna as almas fortes e generosas, que
eleva o espírito, que inspira aos homens uma virtude superior ao medo e
os faz desprezar essa miserável maleabilidade que tudo aprova e que é a
única virtude dos homens bastante fracos para suportar constantemente
uma existência precária e incerta.
Percorram-se, com visão filosófica, as leis e a história das
nações, e se verão quase sempre os nomes de vício e virtude, de bom e
mau cidadão, mudarem de valor segundo o tempo e as circunstâncias. Não
são, porém, as reformas operadas no Estado ou nos negócios públicos que
causarão essa revolução das idéias; esta será a conseqüência dos erros e
dos interesses passageiros dos diferente legisladores.
Muitas vezes se verão as paixões de um século servir de base à
moral dos séculos seguintes, e formar toda a política dos que presidem
às leis. Mas, as paixões fortes, filhas do fanatismo e do entusiasmo,
obrigam a pouco e pouco, à força de excessos, o legislador à prudência,
e podem tornar-se um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do poder,
quando o tempo as tiver enfraquecido.
Foi do enfraquecimento das paixões fortes que nasceram entre
os homens as noções obscuras de honra e virtude; e essa obscuridade
subsistirá sempre, porque as idéias mudam com o tempo, que deixa
sobreviver os nomes às coisas, que variam segundo os lugares e os
climas; é que a moral esta submetida, como os impérios, a limites g
eográficos.
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XXVI. DOS CRIMES DE LESA-MAJESTADE
O S crimes de lesa-majestade foram postos na classe dos grandes crimes,
porque são funestos à sociedade. Mas, a tirania e a ignorância, que
confundem as palavras e as idéias mais claras, deram esse nome a uma
multidão de delitos de natureza inteiramente diversa. Aplicaram-se as
penas mais graves a faltas leves; e, nessa ocasião como em mil outras, o
homem é muitas vezes vítima de uma palavra.
Toda espécie de delito é nociva à sociedade; mas, nem todos os
delitos tendem imediatamente a destruir. É preciso julgar as ações
morais por seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar. Só a
arte das interpretações odiosas, que é ordinariamente a ciência dos
escravos, pode confundir coisas que a verdade eterna separou por limites
imutáveis.
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XXVII. DOS ATENTADOS CONTRA A SEGURANÇA DOS PARTICULARES E,
PRINCIPALMENTE, DAS VIOLÊNCIAS
D EPOIS dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a
representa, vêm os atentados contra a segurança dos particulares.
Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas,
não se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a
atinge.
Entre esses crimes, uns são atentados contra a vida, outros
contra a honra, e outros contra os bens. Falaremos antes dos primeiros,
que devem ser punidos com penas corporais.
Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no
número dos grandes crimes. Compreendem-se, nessa classe, não somente os
assassínios e os assaltos cometidos por homens do povo, mas, igualmente
as violências da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos
magistrados: crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens
elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus
excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de
dever, para substituir as do direito do mais forte: direito igualmente
perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre.
Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às
penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre,
as riquezas, que, sob a proteção das leis, são a recompensa da
indústria, tornar-se-ão alimento da tirania e das iniqüidades.
Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem
que em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para
tornar-se uma coisa que se possa pôr a prêmio. Vê-se, então, a astúcia
dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua força e
dos seus privilégios, aproveitando todas as combinações que a lei lhes
torna favoráveis. Eis o mágico segredo que transformou a massa dos
cidadãos em bestas de carga; foi assim que os grandes acorrentaram
escravos. É por isso que certos governos, que têm todas as aparências de
liberdade, gemem sob uma tirania oculta. É pelos privilégios dos grandes
que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente, depois de se terem
introduzido na constituição, por vias que o legislador negligenciou
fechar.
Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania
declarada; mas, muitas vezes, não vêem o inseto imperceptível que mina
sua obra e que abre por fim, à torrente devastadora, uma estrada tanto
mais segura quanto mais oculta.
Quais serão, pois, as penas reservadas aos crimes dos nobres,
cujos privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da. maior parte
dos povos? Não examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e
nobres é útil ao governo, ou necessária às monarquias; nem se é verdade
que a nobreza é um poder intermediário próprio para conter em justos
limites o povo e o soberano; nem se essa ordem isolada da sociedade não
tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da
indústria, todas as esperanças e toda a felicidade: como essas ilhotas
encantadoras e férteis que se encontram no meio dos desertos terríveis
da Arábia.
Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo
útil na sociedade, é certo que só deveria existir entre os indivíduos e
em virtude das dignidades e do mérito, mas não entre as ordens do
Estado; que as distinções não devem permanecer. num só lugar, mas
circular em todas as partes do corpo político; que as desigualdades
sociais devem nascer e desaparecer a cada instante, mas não perpetuar-se
nas famílias.
Seja qual for a conclusão de todas essas questões,
limitar-me-ei, a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem
devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos. A igualdade civil é
anterior a todas as distinções de honras, e de riquezas. Se todos os
cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis, as distinções
deixarão de ser legítimas.
Deve supor-se que os homens, renunciando à liberdade despótica
que receberam da natureza, para se reunirem em sociedade, disseram entre
si: “Aquele que for mais industrioso obterá as maiores honras, a
glória do seu nome passará aos seus descendentes; mas, não obstante as
honras e as riquezas, não receará menos do que o último dos cidadãos a
violação, das leis que o elevaram acima dos outros”.
É verdade que não há assembléia geral do gênero humano em que
se tenha aprovado semelhante decreto; este se funda, porém, na natureza
imutável dos sentimentos do homem.
A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os
príncipes julgam retirar da nobreza: apenas impede os inconvenientes das
distinções e torna as leis respeitáveis, tirando toda esperança de
impunidade.
Dir-se-á, talvez, que a mesma pena, aplicada contra o nobre e
contra o plebeu, torna-se completamente diversa e mais grave para o
primeiro, por causa da educação que recebeu, e da infâmia que se espalha
sobre uma família ilustre. Responderei no entanto, que o castigo se mede
pelo dano causado à sociedade, e não pela sensibilidade do culpado. Ora,
o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de
condição mais elevada.
Acrescentarei que a igualdade da pena só pode ser exterior, e
não pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade, que é diferente em
cada indivíduo.
Quanto à infâmia que cobre uma família inocente, o soberano
pode facilmente apagá-la com demonstrações públicas de benevolência.
Sabe-se que tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo
crédulo e admirador.
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XXVIII. DAS INJÚRIAS
A S injúrias pessoais, contrárias à honra, isto é, a essa justa porção
de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos,
devem ser punidas pela infâmia. Há uma contradição notória entre as
leis, ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna e da vida de cada
cidadão, e as leis do que se chama a honra, que preferem a .opinião a
tudo.
A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os
mais brilhantes raciocínios, sem ligar-se a nenhuma idéia fixa e
precisa. Tal é a triste condição do espírito humano, que conhece melhor
as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam de
perto e que importam em sua felicidade. As noções morais que mais o
interessam lhe são incertas; só as entrevê cercadas de trevas e
flutuando ao sabor do turbilhão das paixões.
Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar
que, semelhantes aos objetos que se confundem aos nossos olhos, porque
estão próximos demais, as idéias morais, perdem a clareza por estarem
demasiado ao nosso alcance.
Apesar de sua simplicidade, discernimos com dificuldade os
diversos princípios de moral e julgamos, muitas vezes sem conhecê-los,
os sentimentos do coração humano.
Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens, não
se admirará de todas essas coisas; pensará que, para ser feliz e
tranqüilo, o homem talvez não tenha necessidade de tantas leis, nem de
tão grande aparato moral.
A idéia da honra é uma idéia complexa, formada não somente de
várias idéias simples, mas também de várias idéias complexas por si
mesma. Segundo os diferentes aspectos sob os quais a idéia da honra se
apresenta ao espírito, algumas vezes ela encerra e outras exclui certos
elementos que a compõem, só conservando nessas diferentes situações um
pequeno número de elementos comuns, como várias quantidades algébricas
admitindo um divisor comum. Para achar esse divisor comum das diferentes
idéias que os homens fazem da honra, lancemos um rápido olhar sobre a
formação das sociedades.
As primeiras leis e os primeiros magistrados originaram-se da
necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo
natural de todo homem mais robusto do que o vizinho. Foi esse o objeto
do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou aparente de
todas as leis, mesmo as que encerram princípios de destruição.
Mas, a aproximação dos homens e os progressos dos seus
conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e
ligações recíprocas entre os membros da sociedade. Nem todas essas
necessidades tinham sido previstas pela lei, e os meios atuais de cada
cidadão não lhe bastavam para satisfazê-las. Começou então a
estabelecer-se o poder da opinião, por meio da qual podem obter-se
certas vantagens que as leis não podiam proporcionar, e evitar males de
que elas não podiam preservar.
É a opinião que constitui, muitas vezes, o suplício do sábio e
do medíocre. É ela que concede às aparências da virtude o respeito que
recusa à própria virtude. É a opinião que de um vil celerado faz um
missionário ardente, quando esconde seu interesse nessa hipocrisia.
Sob o reinado da opinião, a estima dos outros homens não é
somente útil, mas indispensável a quem permanecer ao nível dos seus
concidadãos. O ambicioso procura os sufrágios da opinião que lhe serve
os projetos; o homem vão mendiga-os, como um testemunho do próprio
mérito; o homem de honra exige-os, porque não pode dispensá-los.
Essa honra, que muita gente prefere à própria existência, só
foi conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade; não pode
ser posta no depósito comum. O sentimento que nos liga à honra não é
outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de natureza, um
movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é
insuficiente em certas ocasiões.
Segue-se daí que, na extrema liberdade política, como na
extrema dependência, as idéias de honra desaparecem ou se confundem com
outras idéias.
Num estado de liberdade ilimitada, as leis protegem tão
fortemente que não se tem necessidade de buscar os sufrágios da opinião
pública.
No estado de escravidão absoluta, o despotismo, que anula a
existência civil, só deixa a cada indivíduo uma personalidade precária e
momentânea.
A honra só é, pois, um princípio fundamental nas monarquias
temperadas, onde o despotismo do senhor é limitado pelas leis. A honra
produz quase, numa monarquia, o efeito que produz a revolta nos Estados
despóticos. O súdito entra por um momento no estado de natureza e o
soberano tem a recordação da antiga igualdade.
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XXIX. DOS DUELOS
A HONRA , que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos, deu
nascimento aos combates singulares, que só puderam estabelecer-se na
desordem das más leis.
Se os duelos não estiveram em uso na antigüidade, como algumas
pessoas o crêem, é que os antigos não se reuniam armados com um ar de
desconfiança, nos templos, no teatro e entre os amigos. Talvez também,
sendo o duelo um espetáculo muito comum que vis escravos davam ao povo,
os homens livres tivessem receio de que os combates singulares não
bastassem para que eles fossem considerados homens honrados.
Seja como for, é em vão que se experimentou entre os modernos
impedir os duelos com pena de morte. Essas leis severas não puderam
destruir um costume fundado numa espécie de honra, mais cara aos homens
do que a própria vida. O cidadão que recusa um duelo vê-se presa do
desprezo dos seus concidadãos; é forçado a levar uma vida solitária, a
renunciar aos encantos da sociedade, ou a expor-se constantemente aos
insultos e à vergonha, cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais
cruel do que a idéia do suplício.
Por que motivo serão os duelos menos freqüentes entre os
homens do povo do que entre os grandes? É somente porque o povo não traz
espada, é porque tem menos necessidade de sufrágios públicos do que os
homens de condição mais elevada, que se observam entre si com mais
desconfiança e inveja.
Não é inútil repetir aqui o que já se disse certa vez: que o
melhor meio de impedir o duelo é punir o agressor, isto é, aquele que
deu lugar à querela, a declarar inocente aquele que, sem procurar tirar
a espada, se viu constrangido a defender a própria honra, isto é, a
opinião, que as leis não protegem suficientemente, e mostrar aos seus
concidadãos que pode respeitar as leis, mas que não teme os homens.
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XXX. DO ROUBO
U M roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena
pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do
seu.
Mas, se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do
desespero, se esse delito só é cometido por essa classe de homens
infortunados, a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez
desnecessário) só deixou a existência como único bem, as penas
pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos,
aumentando o número dos indigentes, arrancando o pão a uma família
inocente, para dá-lo a um rico talvez criminoso.
A pena mais natural do roubo será, pois, essa espécie de
escravidão, que é a única que se pode chamar justa, isto é, a escravidão
temporária, que torna a sociedade senhora absoluta da pessoa e do
trabalho do culpado, para fazê-lo expiar, por essa dependência, o dano
que causou e a violação do pacto social.
Se, porém, o roubo é acompanhado de violência, é justo ajuntar
à servidão as penas corporais.
Outros escritores mostraram, antes de mim, os inconvenientes
graves que resultam do uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos
cometidos com violência e contra aqueles em que o ladrão só empregou a
astúcia. Fez-se ver quanto é absurdo pôr na mesma balança uma certa soma
de dinheiro e a vida de um homem. O roubo com violência e o roubo de
astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política deve
admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de que entre
dois objetos heterogêneos, há uma distância infinita.
Essas coisas foram ditas; mas, é sempre útil repetir verdades
que jamais se puseram em prática. Os corpos políticos conservam por
muito tempo o movimento recebido; é, porém, moroso e difícil
imprimir-lhes um novo movimento.
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XXXI. DO CONTRABANDO
O CONTRABANDO é um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a nação,
mas cuja pena não deveria ser infamante, porque a opinião pública não
empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito.
Porque, pois, o contrabando, que é um roubo feito ao príncipe,
e por conseguinte à nação, não acarreta a infâmia sobre aquele que o
exerce? É que os delitos que os homens não consideram nocivos aos seus
interesses não afetam bastante para excitar a indignação pública. Tal é
o contrabando. Os homens, sobre os quais as conseqüências remotas de um
ato só produzem impressões fracas, não vêem o dano que o contrabando
pode causar-lhes. Chegam mesmo, às vezes, a retirar dele vantagens
momentâneas. Não vêem senão o mal causado ao príncipe, e, para recusarem
estima ao culpado, só têm uma razão premente contra o ladrão, o falsário
e alguns outros criminosos que podem prejudicá-los pessoalmente.
Essa maneira de sentir é conseqüência do princípio
incontestável de que todo ser sensível só se interessa pelos males que
conhece.
O contrabando é um delito gerado pelas próprias leis, porque,
quanto mais se aumentam os direitos, tanto maior é a vantagem do
contrabando; a tentação de exercê-lo é também tão forte quanto mais
fácil é cometer essa espécie de delito, sobretudo se os objetos
proibidos são de pequeno volume, e se são interditos numa tão grande
circunferência de território que a extensão deste torne difícil
guardá-lo.
O confisco das mercadorias proibidas, e mesmo de tudo o que se
acha apreendido com objetos de contrabando, é uma pena justíssima. Para
torná-lo mais eficaz, seria preciso que os direitos fossem pouco
consideráveis; pois os homens só se arriscam na proporção do lucro que o
êxito possa proporcionar-lhes.
Será, porém, o caso de deixar impune o culpado que não tem
nada que perder? Não. Os impostos são parte tão essencial e tão difícil
numa boa legislação, e estão de tal modo comprometidos em certas
espécies de contrabando, que tal delito merece uma pena considerável,
como a prisão e mesmo a servidão, mas uma prisão e uma servidão análogas
à natureza do delito.
Por exemplo, a prisão de um contrabandista de fumo não deve
ser a do assassino ou a do ladrão; e, sem dúvida, o castigo mais
conveniente ao gênero do delito seria aplicar à utilidade do fisco a
servidão e o trabalho daquele que pretendeu fraudar-lhe os dir eitos.
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XXXII. DAS FALÊNCIAS
O LEGISLADOR que percebe o preço da boa fé nos contratos, e que quer
proteger a segurança do comércio, deve dar recurso aos credores sobre a
pessoa mesma dos seus devedores, quando estes abrem falência. Importa,
porém, não confundir o falido fraudulento com o que é de boa fé. O
primeiro deveria ser punido como o são os moedeiros falsos, porque não é
maior o crime de falsificar o metal amoedado, que constitui a garantia
dos homens entre si, do que falsificar essas obrigações mesmas.
Mas, o falido de boa fé, o infeliz que pode provar
evidentemente aos seus juizes que a infidelidade de outrem, as perdas
dos seus correspondentes, ou enfim contratempos que a prudência humana
não poderia evitar, o despojaram dos seus bens, deve ser tratado com
menos rigor. Por que motivos bárbaros ousar-se-á mergulhá-lo nas
masmorras, privá-lo do único bem que lhe resta na miséria, a liberdade,
e confundi-lo com os criminosos e forçá-lo a arrepender-se de ter sido
honesto? Vivia tranqüilo, ao abrigo de sua probidade, e contava com a
proteção das leis. Se as violou, é que não estava em seu poder
conformar-se exatamente a essas leis severas, que o poder e a avidez
insensível impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que
subsiste sempre no coração do homem e que o faz acreditar que todos os
acontecimentos felizes serão para ele e todas as desgraças para os
outros.
O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a
vontade de prejudicar; e os homens, entregando-se às suas primeiras
impressões, amam as leis cruéis, se bem que seja do seu interesse viver
sob leis brandas, pois eles próprios estão submetidos a elas.
Mas, voltemos ao falido de boa fé: não o desobriguem de sua
dívida senão depois que ele a tiver pago inteiramente; recusem-lhe o
direito de subtrair-se aos credores sem o consentimento destes, e a
liberdade de levar adiante sua indústria; forcem-no a empregar seu
trabalho e seus talentos no pagamento do que deve, proporcionalmente aos
seus lucros. Mas, sob nenhum pretexto legítimo, não se poderá fazê-lo
sofrer uma prisão injusta e inútil aos credores.
Dir-se-á, talvez, que os horrores da prisão obrigarão o falido
a revelar as trapaças que ocasionaram uma falência suspeita de fraude. É
bem raro, porém, que essa espécie de tortura seja necessária, se se
fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado.
Se a fraude do falido for muito duvidosa, será melhor optar
por sua inocência. Há uma máxima geralmente certa em legislação, segundo
a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes; mas, a
impunidade é pouco perigosa quando o delito é difícil de constatar-se.
Alegar-se-á também a necessidade de proteger os interesses do
comércio, assim como o direito de propriedade, que deve ser sagrado.
Mas, o comércio e o direito de propriedade não são o fim do pacto
social, são apenas meios que podem conduzir a esse fim.
Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis,
para preservá-los dos inconvenientes que são as conseqüências naturais
do estado social, isso será faltar ao fim procurando atingi-lo; e esse é
o erro funesto que perde o espírito humano em todas as ciências, mas
sobretudo na política (17) .
Poder-se-ia distinguir a fraude do delito grave, mas menos
odioso, e fazer uma diferença entre o delito grave e a pequena falta,
que seria preciso separar também da perfeita inocência.
No primeiro caso, aplicar-se-iam ao culpado as penas
aplicáveis ao crime de falsário. O segundo delito seria punido com penas
menores, com a perda da liberdade. Deixar-se-ia ao falido inteiramente
inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para estabelecer os
seus negócios; e, no caso de um delito leve, dar-se-ia aos credores o
direito de prescrever esses meios.
Mas, a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da
lei, que é a única imparcial; seria perigoso abandoná-la à prudência
arbitrária de um juiz. É tão necessário fixar limites na política quanto
nas ciências matemáticas, porque o bem público se mede como os espaços e
a extensão.
Seria fácil ao legislador previdente impedir a maior parte das
falências fraudulentas e remediar a desgraça do homem laborioso, que
falta aos seus compromissos sem ser culpado. Possam todos os cidadãos
consultar a cada instante os registros públicos, nos quais se terá uma
nota exata de todos os contratos; e que contribuições sabiamente
repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco, do qual se
tirem somas convenientes para socorrer a indústria infeliz. Tais
estabelecimentos só poderão ter vantagens numerosas, sem inconvenientes
real.
Mas essas leis fáceis, a um tempo tão simples e tão sublimes;
essas leis que esperam apenas o sinal do legislador para espalhar sobre
as nações a abundância e a força; essas leis que seriam motivo de
reconhecimento eterno de todas as gerações, são desconhecidas ou
rejeitadas. Um espírito de hesitação, idéias estreitas, a tímida
prudência do momento, uma rotina obstinada, que teme as inovações mais
úteis: tais são os móveis ordinários dos legisladores que regulam o
destino da fraca humanidad e.
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XXXIII. DOS DELITOS QUE PERTURBAM A TRANQÜILIDADE PÚBLICA
A TERCEIRA espécie de delitos que distinguimos compreende os que
perturbam particularmente o repouso e a tranqüilidade pública: as
querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pública, destinada
ao comércio e à passagem dos cidadãos, e os discursos fanáticos que
excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que emprestam
grande força da multidão dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo
obscuro e misterioso, com poder bem maior sobre o espírito do povo do
que a tranqüila razão, cuja linguagem a multidão não entende.
Iluminar as cidades durante a noite à custa do público;
colocar guardas de segurança nos diversos bairros das cidades; reservar
ao silêncio e à tranqüilidade sagrada dos templos, protegidos pelo
governo, os discursos de moral religiosa, e as arengas destinadas a
sustentar os interesses particulares e públicos às assembléias da nação,
aos parlamentos aos lugares, enfim, onde reside a majestade soberana:
tais são as medidas próprias para prevenir a perigosa fermentação das
paixões populares; e são esses os principais objetos que devem ocupar a
vigilância do magistrado de polícia.
Mas, se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e
familiares a todos os cidadãos; se pode, ao contrário, fazer ao seu
capricho leis que julga serem necessárias, abre assim a porta à tirania,
que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade pública lhe
fixou e que só procura transpô-las.
Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem
saber o que precisam fazer para serem culpados, e o que precisam evitar
para serem inocentes.
Um governo que tem necessidade de censores, ou de qualquer
outra espécie de magistrados arbitrários, prova que é mal organizado e
que sua constituição não tem força. Num país em que o destino dos
cidadãos está entregue à incerteza, a tirania oculta imola mais vítimas
do que o tirano mais cruel que age abertamente. Este ultimo revolta, mas
não avilta.
O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião;
quando é senhor dela, apressa-se a comprimir as almas corajosas, das
quais tem tudo que temer, porque só se apresentam com o archote da
verdade, quer no fogo das paixões, quer na ignorância dos peri gos.
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XXXIV. DA OCIOSIDADE
O S governos sábios não sofrem, no seio do trabalho e da indústria, uma
espécie de ociosidade que é contrária ao fim político do estado social:
quero falar de certas pessoas ociosas e inúteis que não dão à sociedade
nem trabalho nem riquezas, que acumulam sempre sem jamais perder, que o
vulgo respeita com uma admiração estúpida e que são aos olhos do sábio
um objeto de desprezo. Quero falar de certas pessoas que não conhecem
necessidade de administrar ou aumentar as comodidades da vida, único
motivo capaz de excitar a atividade humana, e que indiferentes à
prosperidade do Estado, só se inflamam com paixão por opiniões que lhes
agradam, mas que podem ser perigosas.
Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade
com a que é fruto das riquezas adquiridas pela indústria. Cabe
exclusivamente às leis, e não à virtude rígida (mas fechada em idéias
estreitas) de alguns censores, definir a espécie de ociosidade punível.
Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela
que, gozando do fruto dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados,
dá contudo pão e existência à pobreza industriosa, da troca dos prazeres
atuais que recebe desta e que põe o pobre na contingência de travar a
guerra pacífica que a indústria sustenta contra a opulência e que
sucedeu aos combates sangrentos e incertos da força contra a força.
Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornar-se vantajosa, à
medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais
liberdade.
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XXXV. DO SUICÍDIO
O SUICÍDIO é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma
pena propriamente dita; pois essa pena só poderia recair sobre um corpo
insensível e sem vida, ou sobre inocentes. Ora, o castigo que se
aplicasse contra os restos inanimados do culpado não poderia produzir
outra impressão sobre os espectadores senão a que estes experimentariam
ao verem fustigar uma estátua.
Se a pena é aplicada à família inocente, ela é odiosa e
tirânica, porque já não há liberdade quando as penas não são puramente
pessoais.
Os homens amam demasiado a vida; estão ligados a ela por todos
os objetos que os cercam; a imagem sedutora do prazer e a doce
esperança, amável feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao
licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos, encantam
muito fortemente os corações dos mortais, para que se possa temer que a
impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum.
Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso,
aquele que se mata nada tem que temer, pois a morte destrói toda
sensibilidade. Não é, pois, esse motivo que poderá deter a mão
desesperada do suicida.
Mas, aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que
aquele que renuncia para sempre à sua pátria. O primeiro deixa tudo ao
seu país, ao passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus
bens.
Direi mais. Como a força de uma nação consiste no número dos
cidadãos, aquele que abandona o seu país para entregar-se a outro causa
à sociedade o dobro do prejuízo que lhe pode causar o suicida.
A questão reduz-se, pois, a saber se é útil ou perigoso à
sociedade deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade
perpétua de afastar-se dela.
Toda lei que não é forte por si mesma, toda lei cuja execução
pode ser impedida em certas circunstâncias, jamais deveria ser
promulgada. A opinião, que governa os espíritos, obedece às impressões
lentas e indiretas que o legislador sabe dar-lhe; resiste, porém, aos
seus esforços, quando são violentos e diretos; e as leis inúteis, que
logo são desprezadas, comunicam seu aviltamento às leis mais salutares,
que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que como a
salvaguarda da tranqüilidade pública.
Ora, como a energia dos nossos sentimentos é limitada, se se
quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da
sociedade, eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente úteis.
Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas
que um sábio dispensador da felicidade pública poderá tirar desse
princípio; procurarei apenas provar que não é necessário fazer do Estado
uma prisão.
Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de
abandonar seu país, seria uma lei inútil; porque, a menos que rochedos
inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse país de todos os
outros, como guardar todos os pontos de sua circunferência? Como guardar
os próprios guardas?
O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre
que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam. Seu delito já
não pode ser punido, desde que foi cometido; e infligir-lhe um castigo
antes que ele seja consumado, é punir a intenção e não o fato, é exercer
um poder tirano sobre o pensamento, sempre livre e sempre independente
das leis humanas.
Tentar-se-á punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele
deixa? Mas a conclusão, que não se pode impedir por pouco que se
respeitem os contratos dos cidadãos entre si, tornaria esse meio
ilusório. Além disso, semelhante lei destruiria todo comércio entre as
nações; e, se se punisse o emigrado, no caso dele regressar aos país,
isso significaria impedi-lo de reparar o prejuízo que causou à sociedade
e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria.
Enfim, a proibição de sair de um país só faz aumentar, em quem
o habita, o desejo de abandoná-lo, ao passo que desvia os estrangeiros
de nele se estabelecerem. Que se deve, pois, pensar de um governo que
não tem outro meio senão o temor, para reter os homens em sua pátria, à
qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da
infância?
A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é
aumentar o bem-estar respectivo de cada cidadão. Do mesmo modo que todo
governo deve empregar os maiores esforços para fazer pender a seu favor
a balança do comércio, assim também o maior interesse do soberano e da
nação é que a soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos
vizinhos.
Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa
felicidade: embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão,
eles se tornam um remédio necessário à desigualdade, que toma mais força
à medida que a sociedade faz mais progressos (18) .
Mas, os prazeres do luxo são a base da felicidade pública, num
país em que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem
exclusivamente das leis, porque então esses prazeres favorecem a
população; ao passo que se tornam um instrumento de tirania para um povo
cujos direitos não são garantidos. Assim como os animais mais generosos
e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as
florestas longínquas, onde sua liberdade não corre risco, aos campos
alegres e férteis, que o homem, seu inimigo, semeou de armadilhas, assim
também os homens evitam o próprio prazer, quando este lhes é oferecido
pela mão dos tiranos (19) .
Está, pois, demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao
seu país é inútil e injusta; e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que
pune o suicídio.
Trata-se de um crime que Deus pune após a morte do culpado, e
somente Deus pode punir depois da morte.
Não é, porém, um crime perante os homens, porque o castigo
recai sobre a família inocente e não sobre o culpado.
Se me objetarem que o medo desse castigo pode, contudo, deter
a mão do infeliz determinado a morrer, responderei que quem renuncia
tranqüilamente à doçura de viver e odeia bastante a existência terrena
para preferir-lhe uma eternidade talvez infeliz, não se comoverá decerto
com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá
sobre sua família.
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XXXVI. DE CERTOS DELITOS DIFÍCEIS DE CON STATAR
C OMETEM-SE na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes,
mas que é difícil provar. Tais são o adultério, a pederastia, o
infanticídio.
O adultério é um crime que, considerado sob o ponto de vista
político, só é tão freqüente porque as leis não são fixas e porque os
dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro (20) .
Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião,
diria que há uma grande diferença entre esse delito e todos os outros. O
adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante, comum a
todos os mortais, anterior à sociedade; ao passo que os outros delitos,
que tendem mais ou menos à destruição do pacto social, são antes o
efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza.
Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer
que o número dos delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro
é, no mesmo clima, sempre igual a uma quantidade constante. Se assim é,
toda lei, todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos
dessa paixão, seria inútil e até funesta, porque o efeito dessa lei
seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias
necessidades e com as dos outros. O partido mais sábio seria, pois,
seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e dividir-lhe o
curso num número de regatos suficientes para impedir em toda parte dois
excessos contrários, a seca e as enchentes.
A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os
casamentos são mais numerosos e mais livres. Se os preconceitos
hereditários os conciliam, se o poder paterno os forma e os impede ao
seu capricho, a galanteria quebra-lhes secretamente os laços, mau grado
as declamações dos moralistas vulgares, sempre ocupados em gritar contra
os efeitos, omitindo as causas.
Mas, essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos
sublimes da religião mantêm nos limites do dever, que o pendor da
natureza os leva a transpor.
O adultério é um delito de um instante; envolve-se de
mistério; cobre-se de um véu que as próprias leis se empenham em
conservar, véu necessário, mas de tal modo transparente que só faz
aumentar os encantos do objeto que oculta. As ocasiões são tão fáceis,
as conseqüências tão duvidosas, que é bem mais fácil ao legislador
preveni-lo quando não foi cometido do que reprimi-lo quando já se
estabeleceu.
Regra geral: em todo delito que, por sua natureza, deve quase
sempre ficar impune, a pena é um aguilhão a mais. Nossa imaginação é
mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o
objeto dos seus desejos, quando as dificuldades que se apresentam não
são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador,
relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito. Os obstáculos
se tornam, por assim dizer, tantas barreiras que impedem nossa
imaginação caprichosa de afastar-se delas, e que continuamente a forçam
a pensar nas conseqüências da ação que medita. Então a alma se apega bem
mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que às
conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar.
A pederastia, que as leis punem com tanta severidade e contra
a qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da
própria inocência, é menos o efeito das necessidades do homem isolado e
livre do que o desvio das paixões do homem escravo que vive em
sociedade. Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres, é
bem freqüentemente o efeito dessa educação que, para tornar os homens
úteis aos outros, começa por torná-los inúteis a si mesmos, nessas casas
em que uma juventude numerosa, viva, ardente, mas separada por
obstáculos intransponíveis do sexo, do qual a natureza lhe pinta
fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice antecipada,
consumindo de antemão, inutilmente para a humanidade, um vigor apenas
desenvolvido.
O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel
alternativa em que se acha uma infeliz, que só cedeu por fraqueza, ou
que sucumbiu sob os esforços da violência. De um lado a infâmia, de
outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida: como não
havia de preferir esse último partido, que a rouba à vergonha, à
miséria, juntamente com o desgraçado filhinho'
O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria
proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa
espécie de tirania, que só se levanta contra os vícios que não se podem
cobrir com o manto da virtude.
Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os
crimes de que acabamos de falar. Eu quis indicar suas fontes e penso que
me será permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode
chamar precisamente justa ou necessária (o que é a mesma coisa) a
punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores
meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma na
ção.
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XXXVII. DE UMA ESPÉCIE PARTICULAR DE DEL ITO
O S QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de
uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano.
Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo
elevava constantemente fogueiras, em que homens vivos serviam de
alimento às chamas, em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os
gemidos abafados dos infelizes, em que cidadãos corriam, como a um
espetáculo agradável, a contemplar a morte dos seus irmãos, no meio dos
turbilhões de negra fumaça, em que os lugares públicos ficavam cobertos
de destroços palpitantes e de cinzas humanas.
Os homens esclarecidos verão que o país onde habito, o século
em que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a
natureza desse delito. Seria, aliás, empresa demasiado longa e que me
desviaria muito do meu assunto, querer provar, contra o exemplo de
várias nações, a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num
Estado político; procurar demonstrar como certas crenças religiosas,
entre as quais só podem achar-se diferenças sutis, obscuras e muito
acima da capacidade humana, podem contudo perturbar a tranqüilidade
pública, a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras
proscritas.
Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças,
tornando-se mais claras pela fermentações dos espíritos, podem fazer
nascer do choque das opiniões a verdade, que então sobrenada depois de
ter aniquilado o erro, ao passo que outras seitas, pouco firmes em suas
bases; têm necessidade, para manter-se, de se apoiarem na força.
Seria demasiado longo, igualmente, mostrar que, para reunir
todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões
religiosas, é preciso tiranizar os espíritos e constrangê-los a vergar
sob o jugo da força, embora essa violência se oponha à razão e à
autoridade que mais respeitamos (21) , que nos recomenda a doçura e o
amor dos nossos irmãos, embora seja evidente que a força só faz
hipócritas e, portanto, almas vis.
Deve-se crer que todas essas coisas estarão demonstradas e
conformes aos interesses da humanidade, se houver em alguma parte uma
autoridade legítima e reconhecida que as ponha em prática.
Quanto a mim, só falo aqui dos crimes que pertencem ao homem
natural e que violam o contrato social; devo silenciar, porém, sobre os
pecados cuja punição mesmo temporal deve ser determinada segundo outras
regras que não as da filosofia.
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XXXVIII. DE ALGUMAS FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO
E, em primeiro lugar, das falsas idéias de utilidade
A S FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma das
fontes mais fecundas de erros e injustiças.
É ter falsas idéias de utilidade ocupar-se mais com
inconvenientes particulares do que com inconvenientes gerais; querer
comprimir os sentimentos naturais em lugar de procurar excitá-los; impor
silêncio à razão e dizer ao pensamento: “Sê escravo”.
É ter ainda falsas idéias de utilidade sacrificar mil
vantagens reais ao temor de uma desvantagem imaginária ou pouco
importante.
Não teria certamente idéias justas quem desejasse tirar aos
homens o fogo e a água, porque esses dois elementos causam incêndios e
inundações, e quem só soubesse impedir o mal pela destruição.
Podem considerar-se igualmente como contrárias ao fim de
utilidade as leis que proíbem o porte de armas, pois só desarmam o
cidadão pacífico, ao passo que deixam o ferro nas mãos do celerado,
bastante acostumado a violar as convenções mais sagradas para respeitar
as que são apenas arbitrárias.
Além disso, essas convenções são pouco importantes; há pouco
perigo em infringi-las e, por outro lado, se as leis que desarmam fossem
executadas com rigor, destruiriam a liberdade pessoal, tão preciosa ao
homem tão respeitável aos olhos do legislador esclarecido; submeteriam a
inocência a todas as investigações, a todos os vexames arbitrários que
só devem ser reservados aos criminosos.
Tais leis só servem para multiplicar os assassínios, entregam
o cidadão sem defesa aos golpes do celerado, que fere com mais audácia
um homem desarmado; favorecem o bandido que ataca, em detrimento do
homem honesto que é atacado.
Essas leis são simplesmente o ruído das impressões tumultuosas
que produzem certos fatos particulares; não podem ser o resultado de
combinações sábias que pesam numa mesma balança os males e os bens; não
é para prevenir os delitos, mas pelo vil sentimento do medo, que se
fazem tais leis.
É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma
multidão de seres sensíveis à regularidade simétrica que pode receber
uma matéria bruta e inanimada; que se negligenciam os motivos presentes,
únicos capazes de impressionar o espírito humano de maneira forte e
durável, para empregar motivos remotos, cuja impressão é fraca e
passageira, a menos que uma grande força de imaginação, que só se se
encontra num pequeno número de homens, supra o afastamento do objeto,
mantendo-o sob relações que o aumentam e o aproximam.
Enfim, também podem chamar-se falsas idéias de utilidade as
que separam o bem geral dos interesses particulares, sacrificando as
coisas às palavras.
Há, entre o estado de sociedade e o estado de natureza, a
diferença de que o homem selvagem só faz mal a outrem quando nisso
descobre alguma vantagem para si, ao passo que o homem social é às vezes
levado, por leis viciosas, a prejudicar sem nenhum proveito.
O déspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus
escravos, mas esse medo e esse abatimento voltam-se contra ele próprio,
logo lhe enchem o coração e o tornam presa de males maiores do que os
que ele causa.
Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos
riscos, se teme apenas a própria família e as pessoas que o cercam. Mas,
quando o terror é geral, quando fere uma grande multidão de homens, o
tirano deve tremer. Receie a temeridade, o desespero; receie sobretudo o
homem audacioso, mas prudente, que souber com habilidade sublevar contra
ele os descontentes, tanto mais fáceis de serem seduzidos quando se
despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se tiver o
cuidado de mostrar-lhes os perigos da empresa repartidos entre um grande
número de cúmplices. Juntai a isso que os infelizes dão menos valor à
sua existência na proporção dos males que os afligem.
Eis, sem dúvida, porque as ofensas são quase sempre seguidas
de ofensas novas. A tirania e o ódio são sentimentos duráveis, que se
sustentam e tomam novas forças à medida que se exercem; ao passo que, em
nossos corações corruptos, o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem
e se extinguem na ociosidade.
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XXXIX. DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA
O ESPIRÍTO da família é outra fonte geral de injustiças na legislação.
Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais
foram aprovados pelos legisladores mais esclarecidos, nas repúblicas
mais livres, é que se considerou o Estado antes como uma sociedade de
famílias do que como a associação de um certo número de homens.
Suponha-se uma nação composta de cem mil homens, distribuídos
em vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma, inclusive o chefe que a
representa; se a associação é feita por famílias, haveria vinte mil
cidadãos e oitenta mil escravos; se é feita por indivíduos, haveria cem
mil cidadãos livres.
No primeiro caso, seria uma república composta de vinte mil
pequenas monarquias; no segundo, tudo respirará o espírito de liberdade,
que animará os cidadãos, não somente nas praças públicas e nas
assembléias nacionais, mas ainda sob o teto doméstico, onde residem os
principais elementos de felicidade e de miséria.
Se a associação é feita por famílias, as leis e os costumes,
que são sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da
sociedade política, serão obra dos chefes dessas famílias; ver-se-á em
breve o espírito monárquico introduzir-se aos poucos na própria
república, e os seus efeitos só encontrarão obstáculos na oposição dos
interesses particulares, porque os sentimentos naturais de liberdade e
de igualdade já terão deixado de viver nos corações.
O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos
mais insignificantes pormenores; ao passo que o espírito público, ligado
aos princípios gerais, vê os fatos com visão segura, coordena-os nos
lugares respectivos e sabe tirar deles conseqüências úteis ao bem da
maioria.
Nas sociedades compostas de famílias, as crianças ficam sob a
autoridade do chefe e são obrigadas a esperar que a morte lhes dê uma
existência que só depende das leis. Habituadas a obedecer e a tremer, na
idade da força, quando as paixões não são ainda refreadas pela
moderação, espécie de temor prudente que é o fruto da experiência e da
idade, como resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe
constantemente aos esforços da virtude, quando a velhice decrépita e
medrosa tirar-lhes a coragem de tentar reformas ousadas, que aliás as
seduzem pouco, porque não têm a esperança de recolher-lhes os frutos?
Nas repúblicas, em que todo homem é cidadão, a subordinação
nas famílias não é efeito da força, mas de um contrato; e os filhos, uma
vez saídos da idade em que a fraqueza e a necessidade de educação os
mantêm sob a dependência natural dos pais, tornam-se desde então membros
livres da sociedade: se ainda se submetem ao chefe da família, é apenas
para participar das vantagens que esta lhes oferece, do mesmo modo que
os cidadãos se sujeitam, sem perder a liberdade, ao chefe da grande
sociedade política.
Nas repúblicas compostas de famílias, os jovens, isto é, a
parte mais considerável e mais útil da nação, ficam à discrição dos
pais. Nas repúblicas de homens livres, os únicos laços que submetem os
filhos ao pai são os sentimentos sagrados e invioláveis da natureza, que
convidam os homens a ajudar-se mutuamente em suas necessidades
recíprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios
recebidos.
Esses santos deveres são muito mais alterados pelo vício das
leis, que prescrevem uma submissão cega e obrigatória, do que pela
maldade do coração humano.
Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos
e as leis de família, é fonte de muitas outras contradições entre a
moral pública e a moral particular, que se combatem continuamente no
espírito de cada homem.
A moral particular só inspira a submissão e o medo, ao passo
que a moral pública anima a coragem e o espírito da liberdade.
Guiado pela primeira, o homem limita seu bem-estar ao círculo
estreito de um pequeno número de pessoas que ele nem mesmo escolheu.
Inspirado pela outra, procura estender a felicidade sobre todas as
classes da humanidade.
A moral particular exige que cada qual se sacrifique
continuamente a um falso ídolo que se chama o bem da família e que
muitas vezes não é o bem real de nenhum dos indivíduos que a compõem. A
moral pública ensina a procurar o bem-estar sem ferir as leis; e, se às
vezes excita um cidadão a imolar-se pela pátria, recompensa-o pelo
entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe
promete.
Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar
a virtude, que não podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram
e que lhes parece distante, porque está envolta nessa obscuridade que
oculta aos nossos olhos os objetos morais como os objetos físicos.
Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas
não se terá admirado de achar-se um mau homem?
A medida que a sociedade cresce, cada um dos seus membros
torna-se uma parte menor do todo, e o amor do bem público se enfraquece
na mesma proporção, se as leis deixam de fortificá-lo. As sociedades
políticas têm, como o corpo humano, um crescimento limitado; não
poderiam estender-se além de certos limites, sem que sua economia fosse
perturbada.
Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa
do grau de atividade dos indivíduos que a compõem. Se essa atividade
crescesse ao mesmo tempo que a população, as boas leis achariam um
obstáculo, para prevenir os delitos, no próprio bem que tivessem podido
fazer.
Uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo
subdividindo-se num certo número de pequenos Estados confederados. Mas,
para formar essa união, seria preciso um ditador poderoso, que tivesse a
coragem de Sila (22) , com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve
para destruir.
Se tal homem for ambicioso, poderá esperar uma glória imortal.
Se for filósofo, as bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda
de sua autoridade, mesmo sem pedir-lhes reconhecimento.
Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a
enfraquecer-se, os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem
novas forças. Assim, sob o despotismo feroz, os laços da amizade são
mais duráveis; e as virtudes de família (virtudes sempre fracas) se
tornam, então, as mais comuns, ou antes, são as únicas que ainda se
praticam.
Após todas essas observações, pode julgar-se quanto foram
curtas e limitadas as opiniões da maioria dos nossos legisladores.
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XL. DO ESPÍRITO DO FISCO
H OUVE um tempo em que todas as penas eram pecuniárias. Os crimes dos
súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio. Os atentados
contra a segurança pública eram objeto de lucro, sobre o qual se sabia
especular. O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos
que deveriam prevenir. Os julgamentos não eram, então, nada menos do que
um processo entre o fisco que percebia o preço do crime, e o culpado que
devia pagá-lo. Fazia-se disso um negócio civil, contencioso, como se se
tratasse de uma querela particular, e não do bem público. Parecia que o
fisco tinha outros direitos que exercer além da proteção da
tranqüilidade pública, e o culpado outras penas que sofrer além das que
a necessidade do exemplo o exigia. O juiz, estabelecido para apurar a
verdade com ânimo imparcial, não era mais do que o advogado do fisco; e
aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o
exator dos dinheiros do príncipe.
Nesse sistema, quem se confessasse culpado se reconhecia, pela
própria confissão, devedor do fisco; e, como era esse o fim de todos os
processos criminais, toda a arte do juiz consistia em obter essa
confissão da maneira mais favorável aos interesses do fisco.
É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a
jurisprudência criminal, pois os efeitos permanecem por muito tempo
depois de cessadas as causas.
O acusado que recusa confessar-se culpado, embora convencido
por provas certas, sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse
confessado; não lhe será aplicada a tortura pelos outros crimes que
poderia ter cometido, precisamente porque não confessou o crime
principal de que está convencido. Mas, se o crime é confessado, o juiz
apodera-se do corpo do culpado; dilacera-o metodicamente; e faz dele,.
por assim dizer, um fundo do qual tira todo o proveito possível.
Uma vez reconhecida a existência do delito, a confissão do
acusado se torna prova convincente. Acredita-se tornar essa prova menos
suspeita, arrancando a confissão do crime pelos tormentos e pelo
desespero; e se estabeleceu que a confissão não basta para condenar o
culpado, se esse culpado é calmo, se fala desembaraçadamente, se não
está cercado das formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos
suplícios.
Excluem-se cuidadosamente da instrução de um processo as
investigações e as provas que, esclarecendo o fato de maneira a
favorecer o acusado, poderiam prejudicar as pretensões do fisco; e, se
às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado, não é nem por piedade
para com a desgraça, nem por indulgência para com a fraqueza, mas porque
as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco, esse
ídolo que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias
nos torna inconcebível.
O juiz, quando exerce suas funções, não é mais do que o
inimigo do culpado, isto é, de um infeliz curvado ao peso das cadeias,
minado pelo sofrimento, que os tormentos esperam e que o futuro mais
terrível cerca de horror e de assombro. Não é a verdade o que ele
procura; quer descobrir no acusado um culpado; prepara-lhe armadilhas,
parece que tem tudo que perder e que teme, se não puder convencer o
acusado, diminuir a infalibilidade que o homem se arroga em todas as
coisas.
O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode
encarcerar um cidadão. E declarar que esse cidadão é culpado, antes de
poder provar que é inocente. Não se parecerá tal informação com um
procedimento ofensivo? E eis, todavia, a marcha da jurisprudência
criminal, em quase toda a Europa, no século XVIII, em plena luz. Mal se
conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informações, isto é, a
investigação imparcial do fato, prescrita pela razão, seguida nas leis
militares, empregada mesmo por esses déspotas da Ásia, nos assuntos que
só interessam os particulares.
Nossos descendentes, sem dúvida mais felizes do que nós, terão
dificuldade em conceber essa complicação torturosa dos mais estranhos
absurdos, e esse sistema de iniqüidades incríveis, que só o filósofo
poderá julgar possível, estudando a natureza do coração humano.
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XLI. DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES
É MELHOR prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador
sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa
legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior
bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes
possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.
Mas, os meios que até hoje se empregam são em geral
insuficientes ou contrários ao fim que se propõem. Não é possível
submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem
geométrica, que não apresente nem irregularidade nem confusão. Embora as
leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes, não impedem
que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais. Como
poderiam, pois, as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos
sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja alguma
perturbação e algum desarranjo na sociedade? É essa, porém, a quimera
dos homens limitados, quando têm algum poder.
Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes,
não tendo tais atos nada de nocivo, não se previnem os crimes: ao
contrário, faz-se que surjam novos, porque se mudam arbitrariamente as
idéias ordinárias de vício e virtude, que todavia se proclamam eternas e
imutáveis.
Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se fosse preciso
interdizer-lhe tudo o que pode ser para ele uma ocasião de praticar o
mal? Seria preciso começar por tirar-lhe o uso dos sentidos.
Para um motivo que leva os homens a cometer um crime, há mil
outros que os levam a ações indiferentes, que só são delitos perante as
más leis. Ora, quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais
se fará que sejam cometidos. porque se verão os delitos multiplicar-se à
medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais
numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de
privilégios, isto é, de um pequeno número de senhores.
Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras;
fazei-as amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para
defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente
em destruí-las.
Não favoreçam elas nenhuma classe particular; protejam
igualmente cada membro da sociedade; receie-as o cidadão e trema somente
diante delas. O temor que as leis inspiram é salutar, o temor que os
homens inspiram é uma fonte funesta de crimes.
Os homens escravos são sempre mais debochados, mais covardes,
mais cruéis do que os homens livres. Estes investigam as ciências;
ocupam-se com os interesses da nação; vêem os objetos sob um ponto de
vista elevado, e fazem grandes coisas. Mas, os escravos, satisfeitos com
os prazeres do momento, procuram no ruído do deboche uma distração para
o aniquilamento em que se vêem mergulhados. Toda sua vida está cercada
de incertezas, e, como para eles os delitos não estão determinados, não
sabem quais serão suas conseqüências: e isso empresta nova força à
paixão que os leva a praticá-los.
Num povo que o clima torna indolente, a incerteza das leis
entretém e aumenta a inação e a estupidez.
Numa nação voluptuosa, mas ativa, as leis incertas fazem que a
atividade dos cidadãos se limite a pequenas cabalas e intrigas, surdas,
que semeiam a desconfiança. Então, o homem mais prudente é aquele que
sabe melhor dissimular e trair.
Num povo forte e corajoso, a incerteza das leis é forçada por
fim e substituir-se por uma legislação precisa; isso, porém, só acontece
depois de revoluções freqüentes, que conduziram esse povo,
alternativamente, da liberdade à escravidão e da escravidão à liberdade.
Quereis prevenir os crimes? Marche a liberdade acompanhada das
luzes. Se as ciências produzem alguns males, é quando estão pouco
difundidas; mas, à medida que se estendem, as vantagens que trazem se
tornam maiores.
Um impostor ousado (que não pode ser um homem vulgar) faz-se
adorar por um povo ignorante e só é objeto de desprezo para uma nação
esclarecida.
O homem instruído sabe comparar os objetos, considerá-los sob
diversos pontos-de-vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos
outros, porque vê nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas
aversões que agem sobre o seu coração.
Se prodigalizardes luzes ao povo, a ignorância e a calúnia
desaparecerão diante delas, a autoridade injusta tremerá, só as leis
permanecerão inabaláveis, todo-poderosas; e o homem esclarecido amará
uma constituição cujas vantagens são evidentes, uma vez conhecidos seus
dispositivos, e que dá bases sólidas à segurança pública. Poderá ele
lamentar essa inútil partícula de liberdade de que se privou, se a
comparar com a soma de todas as outras liberdades que os seus
concidadãos lhe sacrificaram, e se pensar que, sem as leis, estes
últimos poderiam armar-se e unir-se contra ele?
Dotado de uma alma sensível, verifica-se que, sob boas leis, o
homem só perdeu a funesta liberdade de praticar o mal, forçado a
bendizer o trono e o soberano que só o ocupa para proteger.
Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade. Se
às vezes deram maus resultados, é que o mal era inevitável.
Multiplicando-se os homens sobre a superfície da terra, viram-se nascer
a guerra, algumas artes grosseiras, e as primeiras leis, que não eram
senão convenções momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira
que as produziria. Foi então que a filosofia começou a aparecer; seus
primeiros princípios foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos,
porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros homens os preservam
de muitos erros.
Mas, multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie
humana, foram necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para
impedir as voltas freqüentes, e cada dia mais funestas ao estado
selvagem. Foram, pois, um grande bem para a humanidade (digo um grande
bem sob o aspecto político) os primeiros erros religiosos que povoaram o
universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de
espíritos encarregados de governar a terra.
Foram benfeitores do gênero humano esses homens audaciosos que
ousaram enganar seus semelhantes para servi-los e que arrastaram a
ignorância temerosa ao pé dos altares. Apresentando aos homens objetos
fora do alcance dos sentidos, interessaram-nos na investigação desses
objetos, que fugiam diante deles à medida que os julgavam mais próximos;
forçaram-nos a respeitar o que não conheciam bem e souberam concentrar
para esse único fim, que os impressionava fortemente, todas as paixões
que os agitavam.
Tal foi a sorte de todas as nações que se formaram da reunião
de diferentes povoações selvagens. Foi a época da formação das grandes
sociedades; e as idéias religiosas foram sem dúvida o único laço que
pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis.
Não falo desse povo que Deus escolheu. Os milagres mais
extraordinários e os favores mais assinalados que o céu lhe prodigalizou
substituíram a política humana.
Mas, como os erros podem subdividir-se ao infinito, as falsas
ciências que tais erros produziram fizeram dos homens uma multidão
fanática de cegos, perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes
a chocar-se a cada passo. Então, alguns filósofos sensíveis lamentaram o
antigo estado selvagem; e foi nessa primeira época que os conhecimentos,
ou antes, as opiniões, tornaram-se funestos à humanidade.
Pode considerar-se como uma época mais ou menos semelhante o
momento terrível em que é preciso passar do erro à verdade, das trevas à
luz. O choque terrível dos preconceitos úteis a um pequeno número de
homens poderosos contra as verdades vantajosas para a multidão fraca, e
a fermentação de todas as paixões sublevadas, causam males infinitos aos
infelizes humanos.
Percorrendo a história, cujos principais acontecimentos, após
certos intervalos, se reproduzem quase sempre, detenhamo-nos na passagem
perigosa, mas indispensável, da ignorância à filosofia, e portanto da
escravidão à liberdade; e veremos quantas vezes uma geração inteira é
sacrificada à felicidade da que deve suceder-lhe.
Quando, porém, a calma está restabelecida, quando já está
extinto o incêndio cujas flamas purificaram a nação, livrando-a dos
males que a oprimiam, a verdade, que primeiro se arrastava com lentidão,
precipita os passos, senta-se nos tronos ao lado dos monarcas e, por
fim, nas assembléias das nações, sobretudo nas repúblicas, obtém culto e
altares.
Poder-se-á acreditar, então, que as luzes que esclarecem a
multidão são mais perigosas do que as trevas? E que filósofo se
persuadirá de que o conhecimento exato das relações que unem os objetos
entre si possa ser funesto à humanidade?
Se o semi-saber é mais perigoso do que a ignorância cega,
porque aos males que produz a ignorância acrescenta ainda os erros
inumeráveis que resultam inevitavelmente de uma visão limitada aquém dos
limites da verdade, sem dúvida o dom mais precioso que um soberano pode
conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado das leis a um
homem esclarecido. Acostumado a ver a verdade sem temê-la, acima dessa
necessidade geral dos sufrágios públicos, necessidade que nunca está
satisfeita e que tão freqüentemente faz sucumbir a virtude; habituado a
tudo considerar sob os pontos de vista mais elevados, ele vê a nação
como uma família, os seus concidadãos como irmãos; e a distância que
separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver
com o olhar maior massa de homens.
O sábio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece;
é para ele uma necessidade não desmentir, em sua conduta pública, os
princípios que estabeleceu nos seus escritos e o hábito que adquiriu de
amar a verdade por si mesma.
Tais homens fariam a felicidade de uma nação; mas, para tornar
essa felicidade durável, é preciso que boas leis aumentem de tal forma o
número dos sábios que quase já não seja possível fazer uma escolha
errônea.
Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das
leis a própria sombra da corrupção, interessando os magistrados em
conservar em toda a sua pureza o depósito que a nação lhes confia.
Quanto mais numerosos forem os tribunais, tanto menos se
poderá temer que violem as leis, porque, entre vários homens que se
observam mutuamente, a vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto
menor quanto menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco
considerável para contrabalançar os perigos da empresa.
Se o soberano dá muito aparato, pompa e autoridade à
magistratura; se ao mesmo tempo fecha todo acesso aos lamentos justos ou
mal fundados do fraco, que se julga oprimido; se acostuma os súditos a
temer os magistrados mais do que as leis, aumentará sem dúvida o poder
dos juizes, mas somente à custa da segurança pública e particular.
Podem ainda prevenir-se os crimes recompensando a virtude; e
pode-se observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse
respeito um profundo silêncio.
Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das
descobertas úteis alargaram os conhecimentos e aumentaram o número dos
bons livros, imagine-se que recompensas concedidas por um monarca
benfeitor não multiplicariam também as ações virtuosas. A moeda da
honra, distribuída com sabedoria, jamais se esgota e produz sempre bons
frutos.
Afim, o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difícil de
tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a
educação.
O assunto é vasto demais para entrar nos limites que me
prescrevi. Ouso, porém, dizer que está tão estreitamente ligado com a
natureza do governo que será apenas um campo estéril e cultivado somente
por um pequeno número de sábios, até chegarem os séculos ainda distantes
em que as leis não terão outro fim senão a felicidade pública.
Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que é por
estes perseguido, desenvolveu as máximas principais de uma educação
verdadeiramente útil (23) . Fez ver que ela consistia bem menos na
multidão confusa dos objetos que se apresentam às crianças do que na
escolha e na precisão com as quais se lhes expõem.
Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos
fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre
oferece ao espírito do aluno.
Ensinou a conduzir as crianças à virtude, pela estrada fácil
do sentimento, a afastá-las do mal pela força invencível de necessidade
e dos inconvenientes que seguem a má ação.
Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria
ser abandonado, pois só produz uma obediência hipócrita e passageira.
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XLII. CONCLUSÃO
D E tudo o que acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral
utilíssimo, mas conforme ao uso, que é o legislador ordinário das
nações:
É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a
pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das
penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e
determinada pela lei.
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APÊNDICE
RESPOSTAS ÀS “NOTAS E OBSERVAÇÕES” DE UM FRADE DOMINICANO
SOBRE O LIVRO “DOS DELITOS E DAS PENAS&r dquo;
E SSAS Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra
o autor do livro Dos Delitos e Das Penas, que é chamado fanático,
impostor, escritor falso e perigoso, satírico desenfreado, sedutor do
público. É acusado de distilar o fel mais amargo, de juntar a
contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da dissimulação e
de ser obscuro por perversidade. O crítico pode estar certo de que não
responderei às personalidades.
Representa ele o meu livro como uma obra horrível, virulenta e
de uma licença venenosa, infame, ímpia. Encontra nele blasfêmias
impudentes, insolentes ironias, pilhérias indecentes, sutilezas
perigosas, motejos escandalosos, calúnias grosseiras.
A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto
para duas das mais graves acusações que se acham nessas Notas e
Observações. Serão estas as únicas às quais me julgarei obrigado a
responder. Comecemos pela primeira.
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I – Acusação de impiedade
1. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas não
conhece essa justiça que tem origem no legislador eterno, que tudo vê e
prevê”.
Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas.
“O autor do livro Dos Delitos não aprova que a
interpretação da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz.
– Ora, aquele que não quer confiar a interpretação da lei à
vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus.
– O autor não admite, pois, uma justiça puramente divina...
”
2. – “Segundo o autor do livro Dos Delitos e das
Penas, a Escritura santa só contém imposturas”.
Em toda a obra Dos Delitos e das Penas, só se trata da
Escritura santa uma única vez; é quando, a propósito dos erros
religiosos, no capítulo XLI. eu disse que não falava desse povo eleito
de Deus, para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais
assinaladas substituíram a política humana.
3. – “Toda a gente sensata encontrou no autor do
livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo, um mau homem e
um mau filósofo”.
Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo;
os que me conhecem asseguram que não sou mau homem.
Serei, então, inimigo do cristianismo, quando insisto para que
a tranqüilidade dos templos seja assegurada sob a proteção do governo, e
quando digo, ao falar da sorte das grandes verdades, que a revelação é a
única que se conservou em sua pureza, em meio às nuvens tenebrosas com
que o erro envolveu o universo durante tantos séculos?
4. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
fala da religião como se se tratasse de uma simples máxima
política”.
O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama à religião
“um dom sagrado do céu”. Será provável que ele trate como
simples máxima política o que lhe parece um dom sagrado do céu?
5. – “O autor é inimigo declarado do Ser
supremo”.
Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos
os que me ofendem.
6. – “Se o cristianismo causou algumas desgraças e
alguns morticínios, ele exagera-os e silencia sobre os bens e as
vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gênero
humano”.
Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção
aos males causados pelo Evangelho; não citei mesmo um só fato que com
isso se relacione.
7. – “O autor profere uma blasfêmia contra os
ministros da religião, ao dizer que suas mãos sujaram-se de sangue
humano”.
Todos os que escreveram a história, desde Carlos Magno (24)
até Otão-o-Grande (25) , e mesmo depois desse príncipe, proferiram
muitas vezes a mesma blasfêmia.miau Ignorar-se-á que, durante três séculos,
o clero, os abades e. os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar
para a guerra? E não será o caso de dizer, sem blasfemar, que os
eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da
carnificina sujavam as mãos de sangue humano?
8. – “Os prelados da Igreja católica, tão
recomendáveis por sua doçura e sua humanidade, passam, no livro Dos
Delitos e das Penas, por ser os autores de suplícios tão bárbaros quanto
inúteis”.
Não tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a
mesma coisa. Não se citará na minha obra uma só frase que diga que os
prelados inventaram suplícios.
9. – “A heresia não pode chamar-se crime de
lesa-majestade divina, segundo o autor do livro Dos Delitos e das
Penas”.
Não há em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a
tal imputação. Propus-me apenas tratar Dos Delitos e das Penas, e não
dos pecados.
Eu disse, falando do crime de lesa-majestade, que somente a
ignorância e a tirania, que confundem as palavras e as idéias mais
claras, podem chamar por esse nome e punir como tais, com o último
suplício, delitos de natureza diferente. O crítico talvez ignore quanto
se abusa da palavra lesa-majestade nos tempos de tirania e de
ignorância, aplicando-a a delitos de gênero inteiramente diverso, pois
não conduziam imediatamente à destruição da sociedade. Consulte a lei
dos imperadores Graciano (26) , Valentiniano (27) e Teodósio (28) ;
observe como são considerados criminosos de lesa-majestade aqueles que
ousam duvidar da bondade da escolha do imperador, quando este conferia
algum emprego. Uma outra lei de Valentiniano, de Teodósio e de Arcácio
(29) ensinar-lhe-á que os moedeiros falsos também eram criminosos de
lesa-majestade. Era preciso um decreto do Senado para livrar da acusação
de lesa-majestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores,
embora velhas e mutiladas. Somente depois de um edito dos imperadores
Severo (30) e Antonino é que se deixou de intentar a ação de
lesa-majestade contra os que vendiam as estátuas dos imperadores; e
esses príncipes baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse
crime daqueles que acaso tivessem lançado uma pedra contra a estátua de
um imperador. Domiciano (31) condenou à morte uma dama romana, por se
ter despido diante de sua estátua. Tibério (32) mandou matar, como
criminoso de lesa-majestade, um cidadão que vendera uma casa em que se
achava a estátua do imperador.
Em séculos menos distantes do nosso, verá Henrique VIII (33)
abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplício infame o
duque de Norfolk, sob o pretexto de crime de lesa-majestade, porque ele
juntara as armas da Inglaterra às de sua família. Esse monarca chegou a
declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a morte do
príncipe; daí resultou que, na sua última moléstia, os seus médicos
recusaram adverti-lo do perigo em que se achava.
10. – “Segundo o autor do livro Dos Delitos e das
Penas, os hereges anatematizados pela Igreja e proscritos pelos
príncipes são vítimas de uma palavra”.
Todas essas interpretações são forçadas. Limitei-me a falar do
crime de lesa-majestade humana; e a palavra lesa-majestade serviu muitas
vezes de pretexto à tirania, sobretudo ao tempo dos imperadores romanos.
Toda ação que tivesse a desgraça de desagradar-lhes tornava-se logo um
crime de lesa-majestade. Suetônio (34) diz que o crime de
lesa-majestade era o delito dos que não tinham cometido delito algum. Se
eu disse que a ignorância e a tirania deram esse nome a delitos de
natureza diferente e tornaram os homens vítimas de uma palavra, não fiz
senão falar segundo a história.
11. – “Não será uma horrível blasfêmia sustentar,
com o autor do livro Dos Delitos e das Penas, que a eloqüência, a
declamação e as mais sublimes verdades são um freio demasiado fraco para
reter por muito tempo as paixões humanas?”
Não penso que a acusação de blasfêmia recaia sobre o que eu
disse da eloqüência e da declamação. O acusador quis, de certo,
referir-se à insuficiência que eu atribuo às mais sublimes verdades.
Pergunto-lhe se julga que na Itália se conhecem essas sublimes verdades,
isto é, as da fé. Sem dúvida, responder-me-á que sim. Mas serviram tais
verdades de freio às paixões humanas na Itália? Todos os oradores
sacros, todos os juizes, todos os homens, numa palavra, assegurar-me-ão
o contrário. É um fato, pois, que as sublimes verdades são, para as
paixões humanas, um freio que as não refreia ou que logo se parte; e,
enquanto houver num país católico, juizes criminosos, prisões e
castigos, estará provada a insuficiência das sublimes verdades.
12. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
escreve imposturas sacrílegas contra a Inquisição”.
Meu livro não faz nenhuma menção, nem direta, nem indireta, da
Inquisição. Pergunto, porém, ao meu acusador se lhe parece bem conforme
ao espírito da Igreja a condenação de homens à morte nas fogueiras. Não
é do seio mesmo de Roma, sob os olhos do vigário de Jesus Cristo, na
capital da religião católica, que se cumprem hoje, para com protestantes
de qualquer nação, todos os deveres de humanidade e hospitalidade? Os
últimos papas, e sobretudo o atual, receberam e recebem com a maior
bondade os ingleses, os holandeses e os russos; esses povos, de seitas e
religiões diferentes, têm em Roma toda a liberdade passível, e ninguém
está mais certo do que eles de gozar ali da proteção das leis e do
governo.
13. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
representa, sob cores odiosas, as ordens religiosas e sobretudo os
frades”.
Seria difícil citar um só lugar do meu livro que faça menção
de ordens religiosas ou de frades, a menos que se interprete
arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade.
14. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas é
um desses escritores ímpios, para os quais os eclesiásticos não passam
de charlatães, os monarcas de tiranos, os santos de fanáticos, a
religião de impostura, e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador,
contra o qual vomitam blasfêmias hediondas”.
Passemos às acusações de sediç ão.
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II – Acusações de sedição
1. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
considera todos os príncipes e todos os soberanos do século como tiranos
cruéis”.
Só uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos príncipes
que reinam atualmente na Europa; e eis o que digo: “Feliz o gênero
humano, se, pela primeira vez, recebesse leis! Hoje, que vemos elevados
nos tronos da Europa, etc.” (Ver o fim do cap. XVI).
2. – “Não podem deixar de espantar a confiança e a
liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta
furioso contra os soberanos e os eclesiásticos”.
A confiança e a liberdade não são um mal. Qui ambulat
simpliciter, ambulat confidenter; qui autem depravat vias suas,
manifestus erit (35) .
Se aprovei nos súditos certo espírito de independência, foi na
medida que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os
primeiros magistrados. Desejo mesmo que os homens, não tendo que temer a
escravidão, mas gozando de sua liberdade sob a proteção das leis, se
tornem soldados intrépidos, defensores da pátria e do trono, cidadãos
virtuosos e magistrados incorruptíveis, que levem ao pé do trono os
tributos e o amor de todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas
a segurança e. a esperança de uma sorte cada vez mais doce. Já não
estamos nos séculos de Calígula (36) , de Nero (37) , de Heliogábalo
(38) ; e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes reinantes
acreditando que os meus princípios possam ofendê-los.
3. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
sustenta que o interesse do particular supera o de toda a sociedade em
geral ou dos que a representam”.
Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas, não
creio que o meu adversário tivesse feito um livro de 191 páginas para
refutá-lo.
4. – “O autor do livro Dos Delitos e das Penas
contesta aos soberanos o direito de punir com a morte”.
Como não se trata aqui nem de religião nem de governo, mas
somente da justeza de um raciocínio, meu acusador tem toda a liberdade
de julgar o que quiser. Reduzo o meu silogismo desta forma:
Não se deve infligir a pena de morte, se esta não é
verdadeiramente útil e necessária;
Mas, a pena de morte não é necessária nem verdadeiramente
útil;
Não deve, pois, infligir-se a pena de morte.
Não é este o lugar para uma dissertação sobre os direitos dos
soberanos. O crítico não quererá, certamente, sustentar que se deva
infligir a pena de morte, mesmo quando ela não é verdadeiramente útil,
nem necessária. Proposta tão cruel e escandalosa não pode sair da boca
de um cristão. Se a segunda parte do silogismo não é exata, tratar-se-á
de um crime de lesa-lógica e nunca de lesa-majestade. Podem, aliás,
escusar-se os meus pretensos erros; assemelham-se eles àqueles em que
incidiram tantos cristãos zelosos da primitiva Igreja (39) ;
assemelham-se àqueles em que incorreram os frades da época de
Teodósio-o-Grande, no fim do IV século. Nos seus Anais da Itália, diz
Muratori (40) que, no ano 389, “Teodósio fez uma lei pela qual
ordenava aos frades que permanecessem nos conventos, porque levavam a
caridade pelo próximo ao ponto de arrancar os criminosos das mãos da
justiça, não querendo que se mandasse matar ninguém”. Minha
caridade não vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele tempo
se conduzia por falsos princípios. Uma ação violenta contra a autoridade
pública é sempre criminosa.
Restam-me ainda duas palavras que dizer. Haverá no mundo uma
lei que proíba dizer-se ou escrever-se que um Estado pode existir e
conservar a paz interna sem empregar a pena de morte contra qualquer
culpado? Conta Deodoro (41) (liv. I, cap. LXV) que Sabacão, rei do
Egito, fez-se admirar como modelo de demência, porque comutou as penas
capitais nas da escravidão e porque deu um emprego feliz à sua
autoridade condenando os culpados aos trabalhos públicos. Estrabão (42)
(liv. XI) informa-nos que havia, perto do Cáucaso, algumas nações que
não conheciam a pena de morte, mesmo quando o delito merecia os maiores
suplícios, nemini mortem irrogare, quamvis pessima merito (43) . Essa
verdade é consignada na história romana, na época da lei Pórcia, que
proíbe que se tire a vida de um cidadão romano, se a sentença de morte
não for revestida do consenso geral de todo o povo. Tito Lívio (44)
fala dessa lei (liv. X, cap. IX). Finalmente, o exemplo recente de um
reinado de vinte anos, no mais vasto império do mundo, a Rússia, atesta
ainda essa verdade: a imperatriz Isabel, morta há alguns anos, jurou, ao
subir ao trono dos czares, que não faria morrer nenhum culpado sob o seu
reinado. Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz
compromisso que assumira, sem interromper o curso da justiça criminal e
sem prejudicar a tranqüilidade pública. Se esses fatos são
incontestáveis, será, então verdade dizer que um Estado pode subsistir e
ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso.
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EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO "DOS
DELITOS E DAS PENAS"
De Morellet (45) a Beccaria
Paris, fevereiro de 1766.
Senhor:
Sem ter a honra de conhecer-vos, julgo-me no direito de
endereçar-vos um exemplar da tradução que fiz de vossa obra Dei Delitti
e delle Pene. Os homens de letras são cosmopolitas e de todas as nações;
estão ligados por laços mais estreitos do que os que unem os cidadãos de
um mesmo país, os habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma
mesma família. Julgo, pois, poder entrar convosco num comércio de idéias
e de sentimentos que me será bastante agradável, se não vos recusardes
ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecer-vos pessoalmente,
mas que adquiriu esses sentimentos por vós na leitura do vosso excelente
trabalho.
Foi o sr. de Malesherbes (46) , com quem tenho a honra de
conviver, que me empenhou em fazer passar vosso livro para a nossa
língua. Eu não tinha necessidade, para tanto, de esforçar-me muito.
Era-me uma ocupação agradável tornar-me, para minha nação e para o país
em que nossa língua está difundida, o intérprete e o órgão das idéias
fortes e grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra
está cheia. Parecia-me que me associaria ao bem que fazíeis aos homens e
que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos
corações sensíveis, aos quais são caros os interesses da humanidade.
Faz hoje oito dias que minha tradução apareceu. Eu não quis
escrever-vos mais cedo, porque julguei dever esperar que pudesse
instruir-vos sobre a impressão causada por vossa obra. Ouso, pois,
assegurar-vos, Senhor, que o êxito é universal e que, além da atenção
despertada pelo livro, se formaram pelo autor sentimentos que podem
lisonjear-vos ainda mais, isto é, a estima, o reconhecimento, o
interesse, a amizade. Estou particularmente encarregado de
apresentar-vos os agradecimentos e os cumprimentos do sr. Diderot (47) ,
do Sr. Helvétius (48) , do Sr. de Buffon (49) . Já conversamos muito com
o sr. Diderot sobre vossa obra, que é bem capaz de pôr fogo a uma cabeça
tão quente como é a dele. Terei algumas observações que vos comunicar,
que são o resultado das nossas conversas. O sr. de Buffon serviu-se das
expressões mais fortes para testemunhar-me o prazer que vosso livro lhe
causou; e pede-vos aceiteis os seus cumprimentos. Levei também vosso
livro ao Sr. Rousseau (50) , que está em Paris de viagem para a
Inglaterra, aonde vai estabelecer-se, e que parte por estes dias. Ainda
não posso dizer-vos sua impressão, porque não tornei a vê-lo. Talvez
possa conhecê-la hoje por intermédio do Sr. Hume (51) , com quem irei
jantar; estou, porém, certo da impressão que ele terá. O sr. Hume, que
vive há tempos conosco, encarregou-me, igualmente, de dizer-vos mil
coisas de sua parte.
A essas pessoas, que conheceis por sua reputação, acrescento
um homem infinitamente estimável que as reúne em sua casa, o Sr. barão
d'Holbach (52) , autor de excelentes trabalhos impressos, de química e
de história natural, e de muitos outros que não foram publicados;
filósofo profundo, juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de
conhecimentos, alma sensível e aberta à amizade. Não posso exprimir-vos
a impressão que vosso livro lhe causou, nem quanto ele ama e estima a
obra, e o autor. Como passamos a vida em casa dele, seria preciso que o
conhecêsseis primeiro, porque, se pudermos ter a honra de atrair-vos a
Paris, esta casa será a vossa. Envio-vos, pois, igualmente, os seus
agradecimentos e as suas saudações. Não vos falo do Sr. d'Alembert (53)
, que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à
minha carta. Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra. Quanto à
tradução, compete-lhe dizer-vos se ficou satisfeito...
Não vos ocultarei a mais forte razão que me determinou a
tratar de vos dar alguma boa opinião de mim: a esperança de que me
perdoareis mais facilmente a liberdade que tomei de fazer algumas
modificações na disposição de algumas partes do vosso trabalho.
Apresentei no prefácio as razões gerais que me justificam: convosco,
porém, devo alongar-me um pouco a esse respeito. Para o espírito
filosófico que se torna senhor da matéria, nada mais fácil do que
apreender o conjunto de vosso tratado, cujas partes se ligam
estreitamente e dependem todas do mesmo princípio. Mas, para os leitores
vulgares e menos instruídos, e sobretudo para os leitores franceses,
julgo ter seguido um caminho mais regular e em tudo mais conforme ao
gênio de minha nação e à feição dos nossos livros.
A única objeção que posso temer é a censura de ter diminuído a
força e o calor do original, pelo restabelecimento mesmo dessa ordem.
Eis minhas respostas: Sei que a verdade tem a maior necessidade da
eloqüência e do sentimento. Seria absurdo pensar o contrário, e
sobretudo não seria convosco que se poderia avançar tão estranho
paradoxo. Mas, se não é preciso sacrificar o calor à ordem, creio não
ser preciso tão pouco sacrificar a ordem ao calor; e tudo irá bem se se
puderem conciliar essas duas coisas a um tempo. Resta, pois, examinar,
se me saí bem nessa conciliação.
Se minha tradução tem menos calor do que o original, seria
preciso atribuir essa falha a muitas outras causas, e não à diferença da
ordem. Seria ou a fraqueza do estilo do tradutor, ou a natureza mesma de
toda tradução, que deve ficar abaixo do original, sobretudo nas coisas
de sentimento.
Não devo dissimular-vos outra objeção que me fizeram.
Disseram-me que um autor poderia chocar-se ao ver em sua obra
modificações mesmo úteis. Mas, Senhor, essa maneira de ver não poderia
ser a vossa. Assim pelo menos o julguei. Um homem de gênio, que fez uma
obra admirável, cheia de idéias novas e fortes, e excelente pelo fundo,
deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro não tem toda a ordem de
que era suscetível. Deve ir mesmo até à adoção das modificações feitas,
se forem úteis e baseadas em boas razões. Eis Senhor, a coragem que
espero de vós. Rejeitai, dentre as modificações feitas por mim, aquelas
que vos parecem mal-entendidas; conservai as que estiverem bem, e
acreditai que só tereis feito aumentar vossa reputação. Sois digno de
que eu use para convosco dessa confiança, e me lisonjeio de que o
aproveis.
Terminarei minha justificativa citando-vos grandes autoridades
que aplaudiram a liberdade por mim tomada. O sr. d'Alembert permite-me
que vos diga ser essa a sua opinião. O sr. Hume, que leu com muito
cuidado o original e a tradução, é do mesmo parecer. Eu poderia
citar-vos ainda numerosas pessoas instruídas que assim também o
julgaram.
A avidez com a qual o público recebeu aqui vossa obra faz-me
acreditar que a nossa primeira edição breve estará esgotada e que, antes
de um mês, será preciso fazer outra. Se, na disposição que apresentei,
separei idéias que devam estar ligadas, ou fiz aproximações que vos
pareçam prejudicar o sentido, peço-vos que a respeito me participeis
vossas observações, e, numa nova edição, não deixarei de conformar-me
com vossas opiniões...
Termino, Senhor, esta longa carta, rogando-vos que me
considereis como um dos vossos maiores admiradores e como um dos homens
que mais vivamente desejam participar de vossa estima e de vossa
amizade. Muito me afligiria a idéia de não vô-lo poder dizer um dia a
vós mesmos. Estou ansioso por ter vossas notícias, conhecer vosso juízo
sobre a minha tradução, saber se continuais a marchar na bela estrada
que vos abristes e a ocupar-vos com o bem da humanidade.
É com tais sentimentos de respeito, de estima e de amizade que
tenho a honra de ser, etc.
Morellet.
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De Beccaria a Morellet
Milão, maio de 1766.
Permiti-me, Senhor, que empregue convosco as fórmulas usadas
na vossa língua, como mais cômodas, mais simples, mais verdadeiras, mais
dignas por isso de um filósofo como vós. Permiti-me, igualmente, que me
sirva de um copista, por ser a carta que vos escrevi muito pouco
legível. A mais profunda estima, o maior reconhecimento, a mais terna
amizade, são os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora
que vos dignastes escrever-me. Eu não saberia exprimir-vos quanto me
honra ver minha obra traduzida na língua de uma nação que esclarece e
instrui a Europa. Tudo devo, eu mesmo, aos livros franceses. Foram eles
que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade sufocados
por oito anos de educação fanática. Eu já respeitava vosso nome pelos
excelentes artigos que inseristes na obra imortal da Enciclopédia (54) ;
e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de letras da
vossa reputação dignava-se de traduzir o meu tratado Dos Delitos.
Agradeço-vos, de todo o meu coração, o presente que me fizeste de vossa
tradução, assim como vossa atenção em satisfazer o interesse que eu
tinha em lê-la. Li-a com um prazer que não posso exprimir-vos, e achei
que embelezastes o original. Protesto-vos com a maior sinceridade que a
ordem que seguistes parece-me, a mim mesmo, mais natural e preferível à
minha, e que lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada,
porque do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo
com o vosso plano.
Minha obra nada perdeu de sua força em vossa tradução, exceto
nos lugares em que o caráter essencial a uma e a outra língua
estabeleceu certa diferença entre vossa expressão e a minha. A língua
italiana é mais maleável e dócil, e talvez, por ser menos cultivada no
gênero filosófico, possa adotar expressões que a vossa recusaria
empregar. Não vejo solidez na objeção que vos fizeram, de que a mudança
da ordem poderia fazer perder a força. A força consiste na escolha das
expressões e na aproximação das idéias; e a confusão só pode prejudicar
esses dois efeitos.
O receio de ferir o amor-próprio do autor não devia deter-vos
mais. Primeiro, porque, como vós mesmo o dissestes com razão em vosso
excelente prefácio, um livro em que se defende a causa da humanidade,
uma vez tornado público, pertence ao mundo e a todas as nações; e,
relativamente a mim em particular, eu teria feito muito poucos
progressos na filosofia do coração, que coloco acima da do espírito, se
não tivesse adquirido a coragem de ver e amar a verdade. Espero que a
quinta edição, que deve aparecer breve, esteja logo esgotada; e
asseguro-vos que na sexta observarei inteiramente, ou quase
inteiramente, a ordem de vossa tradução, que dá maior relevo às verdades
que tratei de coligir. Digo quase inteiramente, porque, segundo uma
leitura única e rápida que fiz até este momento não posso decidir-me com
inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como já o fiz
sobre o conjunto.
A impaciência que meus amigos têm de ler vossa tradução
forçou-me, Senhor a deixá-la sair de minhas mãos logo depois de a ter
tido, e sou obrigado a dar em outra carta a explicação de certas
passagens que julgastes obscuras. Devo dizer-vos, porém, que tive, ao
escrever, os exemplos de Machiavelli (55) , de Galileu (56) e de
Giannone ante os meus olhos. Ouvi o ruído das cadeias firmar a
superstição, e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da verdade. A
visão desse espetáculo medonho determinou-me, algumas vezes, a envolver
a luz de nuvens. Quis defender a humanidade sem ser mártir. Essa idéia,
de que eu devia ser obscuro, tornou-me às vezes tal, sem necessidade.
Acrescentai a isso a inexperiência e a falta de hábito de escrever,
perdoáveis num autor que tem apenas vinte e sete anos e que há somente
cinco anos entrou na carreira das letras.
Ser-me-ia impossível pintar-vos, Senhor, a satisfação com a
qual vejo o interesse que tomais por mim, e quanto me comovem as
demonstrações de estima que me dais, e que não posso aceitar sem ser
vão, nem rejeitar sem fazer-vos injúria. Recebi com o mesmo
reconhecimento e a mesma confusão as coisas lisonjeiras que me dissestes
da parte desses homens célebres que honram a humanidade, a Europa e a
sua nação. D'Alembert, Diderot, Helvétius, Buffon, Hume, nomes ilustres
que não se pode ouvir pronunciar sem ficar comovido, assim como vossas
obras imortais, são minha leitura contínua, o objeto de minhas ocupações
durante o dia e de minhas meditações no silêncio da noite. Cheio das
verdades que ensinais, como poderia eu incensar o erro e aviltar-me ao
ponto de mentir à posteridade?...
Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia, e
contentar assim três sentimentos muito vivos em mim: o amor à reputação
literária, o amor à liberdade e a compaixão pelas desgraças dos homens,
escravos de tantos erros. Data de cinco anos a época de minha conversão
à filosofia, e devo-a à leitura das Cartas Persas (57) .
A segunda obra que completou a revolução do meu espírito foi a
do sr. Helvétius. Foi ele quem me lançou com força no caminho da verdade
e quem primeiro despertou minha atenção para a cegueira e as desgraças
da humanidade. Devo à leitura do Espírito (58) uma grande parte de
minhas idéias...
O Sr. conde Firmiani regressou a Milão há vários dias, mas
está muito ocupado, e ainda não pude vê-lo. Ele protegeu meu livro, e é
a ele que devo minha tranqüilidade.
Remeter-vos-ei breve algumas explicações das passagens que
achastes obscuras e que não pretendo justificar, porque não escrevi para
não ser entendido. Rogo-vos encarecidamente me envieis vossas
observações e as dos vossos amigos, para que eu as aproveite numa sexta
edição. Comunicai-me, sobretudo, o resultado de vossas palestras, sobre
meu livro com o sr. Diderot. Desejo vivamente saber que impressão teve
de mim essa alma sublime...
Tenho a honra de ser, etc.
Beccaria
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Notas (1) – Jurisconsulto alemão, do começo do século
XVII.
(2) – Jurisconsulto piemontês, falecido em 1575.
(3) – Jurisconsulto italiano, famoso por sua crueldade,
falecido em Roma em 1618. Deixou uma obra em treze volumes.
(4) – Alusão ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri, do
convento de Vallombrosa, que escreveu Notas e Observações cuja resposta
vem publicada as Notas e Observações cuja resposta vem publicada no
Apêndice deste volume.
(5) – Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês autor
do Leviatan, obra em que defende o materialismo em filosofia, o egoísmo
em moral e o despotismo em política.
(6) – Alusão a Jean-Jacques Rousseau, de cuja autoria
são os livros: Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem
da Desigualdade.
(7) – Charles de Secondat, barão de Montesquieu
(1689-1755), grande escritor francês, autor das Cartas Persas e dos
livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito das Leis.
(8) – “Observe-se que a palavra direito não
contradiz a palavra força. O direito é a força submetida a leis para
vantagens da maioria. Entendo por justiça os laços que reúnem de maneira
estável os interesses particulares. Se esses laços se quebrassem, não
haveria sociedade. É mister que se evite ligar à palavra justiça a idéia
de uma força física ou de um ser existente. A justiça é pura e
simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens encaram as coisas
morais para o bem-estar de cada um. Não pretendo falar aqui de justiça
de Deus, que é de outra natureza, tendo relações imediatas com as penas
e as recompensas de uma vida futura”.
(9) – “Se cada cidadão tem obrigações a cumprir
para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir
para com cada cidadão, pois a natureza de um contrato consiste em
obrigar igualmente as duas partes contratantes. Essa cadeia de
obrigações mútuas, que desce do trono até à cabana e que liga igualmente
o maior e o menor dos membros da sociedade, tem como único fim o
interesse público, que consiste na observação das convenções úteis à
maioria. Violada uma dessas convenções, abre-se a porta à desordem.
– A palavra obrigação é uma das que se empregam mais
freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência. Existem
obrigações a cumprir no comércio e na sociedade. Uma obrigação supõe um
raciocínio moral, convenções racionadas; não se pode, porém, emprestar à
palavra obrigação uma idéia física ou real. É uma palavra abstrata que
precisa ser explicada. Ninguém pode obrigar-vos a cumprir obrigações sem
saberdes quais são tais obrigações”. Nota de Beccaria.
(10) – Isto é, em vernáculo e não em latim.
(11) – “Entre os criminalistas, ao contrário, a
confiança que merece uma testemunha aumenta em proporção da atrocidade
do crime. Apoiam-se eles neste axioma de ferro, ditado pela mais cruel
imbecilidade: In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt, et licet
judici jura transgredi. Traduzamos essa máxima hedionda, para que a
Europa conheça ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos
aos quais está submetida quase sem o saber: “Nos delitos mais
atrozes, isto é, menos provável, bastam as mais ligeiras circunstâncias,
e o juiz pode pôr-se acima das leis.” Os absurdos em uso na
legislação são muitas vezes o resultado do medo, fonte inesgotável das
inconseqüências e dos erros humanos. Os legisladores, ou antes, os
jurisconsultos, cujas opiniões são consideradas após sua morte como
espécies de oráculos, e que, como escritores vendidos ao interesse, se
tornaram árbitros soberanos da sorte dos homens, os legisladores,
repito, receosos de ver condenar inocentes, sobrecarregaram a
jurisprudência de formalidades e exceções inúteis, cuja exata observação
colocaria a desordem e a impunidade no trono da justiça. Outras vezes,
assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar, acharam que
deviam desprezar essas formalidades que eles próprios estabeleceram. Foi
assim. que, dominados ora por um despotismo impertinente, ora por
temores pueris, fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo
abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio”.
(12) – Refere-se Beccaria a Gustavo III (1746-1792), que
subiu ao trono da Suécia, em 1771, tendo feito um governo liberal e
posto em prática numerosas idéias defendidas pelos enciclopedistas
franceses. Morreu assassinado aos 46 anos de idade, vítima de uma
conspiração dos aristocratas.
(13) – Isabel Petrovna (1709-1762), filha de
Pedro-o-Grande, tendo subido ao trono da Rússia em 1741.
(14) – Tito, filho de Vespasiano, imperador romano de 76
a 81, cognominado a delícia do gênero humano, em virtude dos grandes
benefícios feitos ao povo. “Perdi o dia” (Diem perdidi),
– costumava ele dizer quando se passava um dia sem que tivesse
tido ocasião de praticar alguma ação generosa.
(15) – Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores
romanos (Nerva, Trajano, Adriano, Antonio, Marco Aurélio, Vero e Cômodo)
que reinaram de 96 a 192. Seu governo, de 138 a 161, caracterizou-se por
um notável espírito de moderação e de justiça.
(16) – Um dos sete imperadores antoninos, excelente
organizador. Reinou de 98 a 117.
(17) – “Nas primeiras edições desta obra, eu mesmo
cometi esse erro. Ousei dizer que o falido de boa fé devia ser guardado
como penhor de sua dívida, reduzido ao estado de escravidão e obrigado a
trabalhar por conta dos credores. Envergonho-me de ter escrito essas
coisas cruéis. Acusaram-me de impiedade e de sedição, sem que eu fosse
sedicioso nem ímpio. Ataquei os direitos da humanidade, e ninguém se
levantou contra mim...”
(18) – “O comércio ou a troca dos prazeres do luxo
não deixa de ter inconvenientes. Esses prazeres são preparados por
muitos agentes, mas partem de um pequeno número de mãos e se distribuem
a um pequeno número de homens. A maioria só raramente pode prová-los
numa pequena proporção. Eis porque o homem se lamenta quase sempre de
sua miséria. Mas, esse sentimento é apenas o efeito da comparação e nada
tem de real”.
(19) – “Quando a extensão de um país aumenta em
proporção maior do que a população, o luxo favorece o despotismo, porque
a indústria particular diminui à medida que os homens estão mais
dispersos, e, quanto menos indústria houver, mais os pobres dependerão
dos ricos, cujo fausto os faz subsistir. Torna-se, então, tão difícil
para os oprimidos reunirem-se contra os opressores, que as insurreições
deixam de ser temidas. Os homens poderosos obtém com muito mais
facilidade a submissão, a obediência, a veneração e essa espécie de
culto que torna mais sensível a distância que o despotismo estabelece
entre o homem poderoso e o infeliz. &rário, uma barreira contra o
despotismo. – Anima a indústria com a atividade dos cidadãos. O
rico encontra em torno de si bastantes prazeres para entregar-se
completamente ao luxo de ostentação, o único capaz de firmar no espírito
do povo a idéia de sua dependência. E pode observar-se que nos Estados
vastos, mas fracos e despovoados, o luxo de ostentação deve prevalecer,
se outras causas não o impedem; ao passo que o luxo de comodidade
tenderá a diminuir cada vez mais a ostentação nos países mais populosos
do que extensos”.
(20) – “Essa atração se parece em muitas coisas
com a gravitação universal. A força dessas duas causas diminui com a
distância. Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos, a atração
natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma,
enquanto durar sua atividade. Essas causas diferem pelo fato de que a
gravitação se põe em equilíbrio com os obstáculos que encontra, ao passo
que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e
vigor”.
(21) – O Evangelho.
(22) – Ditador romano, nascido em 136 a. C. Companheiro
e mais tarde rival de Mário, cônsul em 88, vencedor de Mitridates, chefe
do partido aristocrático e depois senhor de Roma e da Itália. Proscreveu
os adversários, reformou a constituição romana em sentido favorável ao
Senado e conseguiu enorme influência. Abdicou inesperadamente em pleno
fastígio e morreu no ano seguinte (80 a. C.).
(23) – Referencia à obra Emilio ou Da Educação (1762),
romance filosófico em que Jean-Jacques Rousseau propõe um sistema de
educação baseado no princípio de que &nfluência salutar sobre a educação
daquela época.
(24) – Carlos Magno ou Carlos I (742-814), rei dos
Francos e imperador do Ocidente, era filho de Pepino-o-Breve, do qual
sucedeu em 768. Político profundo e hábil organizador, estimava e
protegia as letras, criando escolas, rodeando-se de homens eminentes e
governando com sabedoria o seu imenso império.
(25) – Otão I, o Grande (912-973), imperador da Alemanha
desde 936, tendo governado com grande habilidade.
(26) – Imperador romano de 375 a 383.
(27) – Imperador romano de 364 a 375, cujo governo foi
assinalado por grande severidade e intolerância religiosa.
(28) – Teodósio I, o Grande (346-395), imperador romano
que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre o paganismo.
(29) – Arcádio (376-408), filho de Teodósio, imperador
do Oriente desde 395.
(30) – Alexandre Severo (208-235), imperador romano,
sucessor de Heliogábalo.
(31) – Imperador romano de 81 a 96, filho de Vespasiano
e de Tito, célebre por sua crueldade. Morreu assassinado, sendo cúmplice
do crime sua própria mulher. Foi o último dos doze Césares.
(32) – Segundo imperador romano, de 14 a 37, famoso por
sua desumanidade.
(33) – Henrique VIII (1491-1547), rei da Inglaterra
desde 1509, rompeu com a Igreja católica e fundou o anglicanismo.
Instruído, artista, mas cruel e libertino.
(34) – Historiador latino, autor da obra Os doze
Césares, coleção de anedotas de imenso interesse documental.
(35) – “Quem caminha livremente, caminha com
confiança; quem, porém, se desvia do seu caminho, será
descoberto”.
(36) – Calígula (12-41), imperador romano desde 37.
Famoso por sua crueldade, desejava que o povo romano tivesse uma só
cabeça para decepá-la de um golpe. Sua insensatez chegou ao ponto de dar
o titulo de cônsul ao seu cavalo Incitatus.
(37) – Imperador romano de 54 a 68, que se celebrizou
por sua crueldade.
(38) – Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou
famoso por suas loucuras e crueldades.
(39) – “Podem consultar-se os santos padres e,
entre outros, Tertuliano na sua Apolog., cap. XXXVII, onde ele diz que
os cristãos tinham por máxima sofrer ante a própria morte do que dá-la a
alguém. E, no seu Tratado de Idolatria, caps. XVII e XXI, condena ele
toda espécie de cargos públicos, como interditos aos cristãos, porque
não era possível exercê-los sem que, às vezes, fosse obrigado a
pronunciar a pena de morte contra os criminosos”.
(40) – Lodovico Antonio Muratori (1672-1750),
historiador Italiano.
(41) – Deodoro da Sicília, autor de uma Biblioteca
Histórica.
(42) – Geógrafo grego, autor de uma preciosa Geografia.
Morreu sob Tibério.
(43) – “Não condenar ninguém à morte, nem mesmo
pelo pior delito”.
(44) – Tito Lívio (59 a. C. – 19 d. C.),
historiador latino, nascido em Pádua. Deixou, sob o título de Décadas,
uma história romana, mais notável pelo estilo do que pela autenticidade
dos fatos.
(45) – André Morellet (1727-1819), abade, literato e
economista francês, colaborador da Enciclopédia.
(46) – Chrétien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes
(1721-1794), magistrado de grande reputação, ministro sob Luiz XVI, que
ele defendeu perante a Convenção. Morreu no cadafalso.
(47) – Denis Diderot (1713-1784), filósofo francês,
ardente propagandista das idéias filosóficas do século XVIII, um dos
fundadores da Enciclopédia. Deixou várias obras importantes.
(48) – Claude-Arien Hélvetius (1715-1771), literato e
filósofo francês, autor do livro Do Espírito.
(49) – Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707 1778),
naturalista e escritor francês, autor da História Natural.
(50) – Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e
escritor francês, nascido em Genebra, autor da Nova Heloísa, do Contrato
Social, do Emilio ou Da Educação, Confissões e Discursos sobre as
Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade.
(51) – David Hume (1711-1776), filósofo e historiador
inglês, criador da filosofia fenomenista, autor de um célebre Ensaio
sobre o Entendimento Humano.
(52) – Paul-Henri Holbach (1723-1789), barão, filósofo
materialista francês, amigo e protetor dos Enciclopedistas
(53) – Jean le Rond d'Alembert (1717-1783), célebre
escritor, filósofo e matemático francês, um dos fundadores da
Enciclopédia.
(54) – Publicação monumental, dirigida por d' Alembert e
Diderot, que foi uma verdadeira máquina de guerra posta ao serviço das
doutrinas filosóficas do século XVIII (1751-1772).
(55) – Nicolau Machiavelli (1469-1527) político e
historiador italiano, autor das Décadas sobre Tito Lívio e do Príncipe.
(56) – Galileu Galilei (1564-1642), ilustre matemático,
físico e astrônomo italiano, nascido em Pisa. Proclamou, partilhando a
teoria de Copérnico, que o Sol, e não a Terra, é o centro do mundo
planetário, e que a Terra gira em torno de si mesma e tem também, como
os outros planetas, um movimento de translação ao redor do Sol. Foi por
isso denunciado como herege e obrigado pela Inquisição a abjurar de
joelhos as suas afirmações (1633). Depois dessa abjuração, que o livrou
da fogueira, foi condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais
tarde. É famosa sua frase: E pur si muove! (E contudo se move!), que
teria proferido ao ser obrigado a abjurar.
(57) – Cartas satíricas que Montesquieu publicou em
1721, sob o anônimo. É uma correspondência imaginária de dois persas
chegados à Europa, Rica e Uzbek, dirigida aos seus amigos da Pérsia e na
qual o autor passa em revista, com plena liberdade, a política, a
religião e toda a sociedade francesa de sua época.
(58) – Obra publicada em 1758 e na qual Helvétius
aconselha o materialismo, tendo provocado os mais vivos protestos.
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